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Análise

Obra de músico baiano resiste ao tempo e supera regionalismos

Sem Caymmi não teria havido Caetano ou Gilberto Gil; artista é referência também para Chico e João Gilberto

LUIZ FERNANDO VIANNA ESPECIAL PARA A FOLHA

Em março, a loja A Guitarra de Prata, no Rio de Janeiro, teve de fechar suas portas após 127 anos, pois o banco que comprou 18 casarões da rua da Carioca está subindo os aluguéis para forçar a saída dos comerciantes.

Foi num violão da Guitarra de Prata, encomendado por seu pai, que Dorival Caymmi aprendeu a tocar.

A história ilustra como o tempo, bem mais precioso para o compositor, é matéria desprezível na era da "monetização" de tudo, da existência barateada nas redes sociais.

Ainda assim, Caymmi insiste em não ser obsoleto. A força de suas melodias e letras é tão grande que nem a derrocada do ser humano a abala. Talvez a reforce.

Já se disse, mas vale repetir: as músicas de Caymmi não parecem nascidas de homem. São complexas, mas parecem naturais. Palavras e notas se repetem como os dias e as noites. Pode-se fantasiar que o mar e o vento, seus temas, também são seus parceiros.

É belo quando ele diz, em entrevista a Tárik de Souza: "Meu sonho é chegar a essa perfeição de ser o autor de uma Ciranda, Cirandinha', uma coisa que se perca no meio do povo".

Conseguiu. E tudo começou mesmo no meio do povo, nas ruas de Salvador das primeiras décadas do século 20, ouvindo os pregões das pretas do acarajé, do vatapá e do acaçá. "Minha música vem daí", informa.

Itapoã, Abaeté, as festas de rua, o Dois de Fevereiro, os cantos dos terreiros, a vida dos pescadores, ele fixa uma Bahia tão real quanto mítica, à prova de tempo. E foi com apenas 23 anos que se mudou para o Rio, onde fez sambas-canções eternos.

Não é um folclorista. O que ouve chega ao violão em harmonias alteradas, acordes invertidos, a musicalidade inata encorpada por Bach, Fauré, Debussy, Gershwin.

"Desde pequeno acho que o som deve ter outra beleza, além do acorde perfeito. Foi assim que tive sorte na música", resume o compositor na biografia escrita pela neta Stella Caymmi.

Quando alguém reduzia Caymmi ao regionalismo, Tom Jobim corrigia: "Caymmi é grande". E foi estudando "Rosa Morena" que João Gilberto chegou ao núcleo de seu projeto revolucionário.

Sem Caymmi não teria havido Caetano e Gil como são, nem mesmo Edu e Chico.

Desprovido de discurso político, ele intuiu com sua obra um projeto civilizatório que o país não cumpriu.

Em outra oportunidade, escrevi nesta Folha que, se todos fôssemos um pouco Caymmi, a vida não seria assim. Ele deveria ser um farol para que o Brasil não se afogasse na lagoa escura de sua falta de caráter. Já parece não haver mais tempo.


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