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Contardo Calligaris
Torcer por quê?
Vocês não torciam pela seleção do país? Claro que não. Amo pessoas, línguas, culturas, não países
Começa a Copa. Vamos torcer? Tudo bem, mas para o que serve?
1) Dizem que a torcida sustenta o esforço dos atletas. Por isso, jogar em casa é uma vantagem: o público estimula o time de casa. Nos meus dias de esporte competitivo, lutei numa final nacional contra um suíço-alemão, de Berna. A luta era em St. Gallen, também suíça-alemã, e eu representava Genebra, suíça-francesa. A cada vez que o bernês me acertava, o público inteiro gritava "Schön"¦" (bonito). Eu não gostava, embora essas manifestações hostis não tenham me desmotivado (talvez elas tenham até funcionado como um incentivo).
Seja como for, o efeito da torcida na atuação dos atletas só vale ao vivo.
2) Para o que serve, então, torcer diante da televisão? O primeiro jogo ao qual eu assisti foi em Milão, San Siro; era o Milan contra o Benfica. Não era a final da Copa Europa de 1963, que o Milan ganhou e que foi jogada em Londres, estádio de Wembley. O jogo em San Siro começou com um gol de Altafini; eu e meu irmão estávamos atrasados, ainda subindo pelo caracol das tribunas: não vimos nada, só ouvimos o grito da torcida. Problema: meu time marcou porque eu estava chegando ou porque eu ainda não tinha chegado?
Assim que me instalei no meu assento, o Milan começou a apanhar. Deduzi que o time ganharia se eu reproduzisse a situação do primeiro gol, ou seja, se eu ouvisse sem olhar. Passei o jogo de olhos fechados.
O Milan ganhou, e, para mim, ficou difícil ir ao estádio. Podia escutar o jogo no rádio, mas assistir ao jogo na televisão, que efeito isso teria?
Era impossível dizer, porque as variáveis são infinitas. Por exemplo, eu assisti ao jogo e o time ganhou, mas é porque a tia Maria também estava lá ou por causa da comida que encomendamos. Quero ver o time ganhar se a tia não estiver lá e se a gente pedir pizza de frango"¦
A torcida à distância sempre tenta descobrir as condições de seu poder mágico. De fato, torcer à distância só tem um efeito: o de alimentar a fé do torcedor na sua possibilidade de influenciar o mundo.
3) Em geral, torcer é mais importante para o torcedor do que para o resultado do jogo. Na minha infância, em Milão, ser Milan ou ser Inter era uma identidade social quase indispensável. Tinha que ser alguma coisa, e fui Milan porque meu irmão era Milan.
Essa identidade, que parecia útil na infância, foi atropelada na adolescência. A partir dos meus 12 anos (anos 1960), ler Camus era uma identidade social básica muito mais necessária e poderosa do que torcer por um time. A cultura, a singularidade do pensamento, uma certa densidade interna, isso tudo era sexy. Usar uma camiseta de futebol, ao contrário, era o jeito certo de se condenar à irrisão pelas meninas, à solidão e à abstinência (cá entre nós, as mulheres sempre subestimam sua capacidade de civilizar os homens).
Era uma bola de neve: talvez você começasse a ler e a pensar seriamente para merecer um olhar que revelasse interesse e desejo, mas, uma vez que você tivesse se "alfabetizado", torcer se tornava impossível. O que a torcida, com sua adesão cega, tinha a ver com o trágico, o espírito crítico, o risco de viver --essas coisas que faziam o charme da nossa vida?
4) Alguém perguntará: vocês não torciam nem pela seleção de seu país? Não; pela seleção, torcíamos menos ainda. A ideia de nação, naquele começo dos anos 1960, era francamente suspeita. Como assim, você não amava seu país? Claro que não. Mesmo hoje, amo pessoas específicas, línguas, culturas --não países. O país inclui corruptos, idiotas, fascistas, caretas --o que eu tenho a ver com isso? Eventualmente, tenho carinho por nações que representaram (e, às vezes, ainda representam) ideias que defendo, e é só.
Uma citação famosa de Samuel Johnson diz que "o patriotismo é o último refúgio dos canalhas"; o ministro Aldo Rebelo (Folha de 14/5) quis mostrar que Johnson criticava o falso patriotismo e, por isso, lembrou que ele, em seu dicionário, define o patriota como "aquele que privilegia o amor ao seu país". Eu não vejo contradição alguma: o que significa "privilegiar o amor a seu país"? Colocá-lo acima de quê? De critérios morais? De valores universais? Da liberdade dos cidadãos de outros países? E alguém faria isso para o quê, se não para justificar uma patifaria?
Nota: esta coluna é dedicada aos amigos que me perguntam por que país eu vou torcer na Copa.