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Análise

Marlene foi bem maior que sua popularidade

Artista multimídia antes do termo, ela recusou-se a viver do título de Rainha do Rádio; cantora morreu na sexta (13)

RUY CASTRO COLUNISTA DA FOLHA

Com todo o respeito pela concorrência, ela era mesmo a maior. E assim foi por muito tempo. Mais até do que suspeitavam aqueles que "gostavam" dela, mas que, por muitos anos, só a acompanharam de longe e se surpreenderam quando, em 1998, aos 74 anos, ela lançou um excepcional CD, "Estrela da Vida".

Não era apenas o primeiro disco de Marlene em 20 anos, mas o melhor de sua carreira. Continha uma nova versão de "Apito no samba", ainda com mais garra que a de seu sucesso original, em 1959, e um repertório de Chico Buarque, Gonzaguinha, João Bosco & Aldir Blanc, Lulu Santos e Kurt Weill, à altura de seu indestrutível gogó.

Mas como convencer o público de que Marlene dispensava condescendências por sua idade e aquele era um disco a ser apreciado sob quaisquer critérios?

Quem a conhecia não tinha o direito de duvidar. O problema é que, profissional desde os 16 anos, em 1940, Marlene sobreviveu a todos os seus públicos --ponha aí três, talvez quatro gerações. As pessoas a descobriam, apaixonavam-se, seguiam-na por muito tempo, envelheciam e morriam-- e Marlene continuava.

Sua carreira fonográfica compreendeu todos os formatos praticados no século 20: começou nos anos 1940, pelos discos de 78 rpm, quando só estes existiam; continuou nos anos 1950 pelos LPs de 10 polegadas; firmou-se por muito tempo nos de 12 polegadas; e, nos anos 1990, chegou ao CD e, incrivelmente, ao DVD.

Nenhuma outra cantora brasileira pode ostentar esse cartel. Assim como nenhuma outra se sentiu tão à vontade em tantos estilos.

Como cantora de disco, Marlene gravou de marchinhas ("Eva, me leva/ Pro paraíso afora/ Se estou com muita roupa/ Eu jogo a roupa fora...", de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, em 1952) a sambas com mensagem social para o Carnaval ("Lata D'Água", "Sapato de Pobre", "Zé Marmita", "Patinete no Morro" "Mora na Filosofia", "Lamento da Lavadeira"), baiões ("Qui Nem Jiló"), sambas de terreiro ("Se É Pecado Sambar"), sambas-enredo ("Alô, Alô, Taí Carmen Miranda" --que ela puxou na avenida para o Império Serrano em 1972), bossa nova ("Bim-Bom", "Rio", "Brigas Nunca Mais"), etc. etc., sendo quase sempre a lançadora dessas músicas.

Seu LP de 1957, "Assis Valente", com dez canções do compositor, foi um dos primeiros "songbooks" feitos no Brasil. E seu leque de compositores abrangeu dos pioneiros José Maria de Abreu e Luiz Peixoto (o delicioso "E Tome Polca") a Edu Lobo, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Taiguara e Zé Rodrix.

E quem desbravou tantos veículos? Ainda menor de idade, Marlene foi crooner de orquestras de cassinos. Quando o jogo foi proibido e os cassinos fecharam, em 1946, passou-se para as boates, como as do Copacabana Palace, já como estrela.

A Rádio Nacional a chamou em 1947 e, graças a um golpe publicitário urdido pela Antarctica, sem a sua participação, foi eleita Rainha do Rádio de 1949, derrotando a aparentemente invencível Emilinha Borba (que, na verdade, ainda perdeu o 2º. lugar para Ademilde Fonseca). Recusando-se a viver desse título, Marlene fez cinema, teatro e televisão (como cantora e atriz), alternando musical, comédia e drama. Como se chama isto? Ah, sim, multimídia. E, tudo que fez, Marlene fez bem.

Incrível é que fosse tudo isto tendo nascido de uma família italiana pobre na São Paulo de 1924 (ela e suas irmãs foram as primeiras brasileiras da família) e educada como interna num colégio americano.

Por isso, Vitoria Bonaiutti de Martino (seu nome verdadeiro) chegou praticamente aos 15 anos de idade sem ter ouvido música popular, nem mesmo italiana. Sua mãe, evangélica, só admitia clássicos, e desligava o rádio ao primeiro chocalho de um pandeiro. Mas a magia da arte está nisto: sem nunca ter ouvido Linda e Dircinha Batista ou Dalva de Oliveira, Marlene era, de repente, uma delas, e ao mesmo microfone, na Urca.

Por muito tempo, seu valor como intérprete ficou à sombra de sua popularidade, que a impedia de sair à rua, e da "rivalidade" com Emilinha Borba, que só existia na cabeça das fãs.

Tanto a popularidade como as fãs eram reais --em duas ocasiões, Marlene foi agredida por adeptas de Emilinha à saída do auditório da Rádio Nacional. (Suas fãs talvez quisessem fazer o mesmo com a "rival".) A própria Marlene não deixava que esse tipo de idolatria nublasse sua consciência artística e profissional. Por isso, nunca foi de visitar fã-clubes, e olhe que, só no Rio, tinha mais de 50.

'MÉDIA GUARDA'

Era muito lúcida e inteligente. Quando, nos anos 1960, a música brasileira parecia dividir-se em "Jovem Guarda" e "Velha Guarda", ela perguntou: "E nós, a Média Guarda'?" Referia-se a ela, Emilinha, Ademilde, Elizeth Cardoso, Ângela Maria e outras, todas no apogeu vocal e condenadas ao limbo.

Na época, Marlene reagiu e deu sua volta pessoal por cima, estrelando alguns dos melhores musicais de teatro já feitos no país.

Ela nunca se conformou com a desnacionalização musical do Brasil. Gostava, digamos, dos Beatles, mas, com seu tremendo ouvido, dizia que o que eles faziam era o nosso bem conhecido e abandonado... baião.


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