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Memórias e criações da mente guiam peça
"A Marca da Água", da Armazém, mostra mundo reconfigurado por mulher que passou por cirurgia no cérebro
Companhia paranaense traz a São Paulo texto calcado em conceitos do escritor e neurologista inglês Oliver Sacks
Na primeira cena de "A Marca da Água", que a Armazém Companhia de Teatro estreia neste sábado no Sesc Santana, uma mulher na faixa dos 40 anos observa um peixe gigante se debater à beira de uma piscina. Ela quer salvá-lo da morte, mas permanece impotente diante da situação, confusa com as proporções do animal.
Nas interseções do surreal e do onírico (ou nos estranhamentos desse par) é que o grupo paranaense radicado há anos no Rio costura seu espetáculo. Boa parte do trabalho está calcada na obra e nos conceitos do neurologista e escritor inglês Oliver Sacks, para quem "cada percepção é uma criação, cada lembrança é uma recriação".
De forma sintética: o espectador assiste da plateia a um mundo reconfigurado pela mente da protagonista. Situações vividas na infância se embaralham com memórias recentes da vida adulta. Em cena, a desordem temporal dá origem a uma narrativa fragmentada.
Havia o risco de esse mote desaguar num texto confuso ou hermético, mas a simplicidade das situações, diz o diretor Paulo de Moraes, permite montar o quebra-cabeça com facilidade. A bem da verdade, há apenas um evento-chave na história toda, relacionado a uma cirurgia cerebral da personagem na infância. Quase todo o resto da peça se desenvolve no campo sensorial.
VOZES DIFUSAS
O uso da água como forte elemento cênico simboliza essa imersão:
"Quando estamos debaixo d'água, ouvimos vozes difusas lá em cima, vemos imagens distorcidas; quando saímos da água, a noção de tempo parece modificada", afirma Moraes, que escreveu o texto em parceria com Maurício Arruda Mendonça.
Segundo ele, a dramaturgia surgiu a partir da concepção do espaço cênico, e não o contrário. "Sabíamos que queríamos usar a água como elemento de palco", diz. O texto, prossegue, foi tomando forma durante os ensaios, e o norte temático também deu origem aos figurinos de Rita Murtinho, criados em neoprene e tactel.
Com essa montagem, a Armazém é um dos nomes favoritos ao Prêmio Shell carioca, que em março reconhecerá trabalhos apresentados ao longo do ano passado. A montagem concorre nas categorias melhor autor, atriz (Patrícia Selonk) e cenário (Paulo de Moraes).
A memória que serve de fio condutor à montagem de agora é um dos temas-fetiche da produção recente do Armazém. Era ela que o protagonista de "Inveja dos Anjos" (vencedora de dois Shell) queria despachar para a fogueira, a fim de expurgar as aflições e amores perdidos do passado.
É também uma torrente de recordações que dispara a ação em "Antes da Coisa Toda Começar", trabalho imediatamente anterior a "Água", em que o fantasma de um ator atrai para a solidão de seu limbo três tipos cujas inquietudes espelham as dele.