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Memórias que viram histórias

"Jamón" real

Madri, abril de 2006

JUAN PABLO VILLALOBOS TRADUÇÃO *FRANCESCA ANGIOLILLO*

Esta história, a história das minhas relações protocolares com dom Juan Carlos de Bourbon, rei da Espanha, é a história de um olhar e de um pisão separados por 6.104 dias. Isto é: quase 17 anos.

A primeira data é 4 de agosto de 1989, em Lagos de Moreno, no oeste do México. Tenho 15 anos e faltam dez minutos para a uma da tarde; eu me encontro de pé do lado de fora da igreja da Merced. Faz um calor típico dos anos 80 e, apesar disso, visto camisa de manga longa, gravata e uns mocassins que me torturam. Essa é a ideia de elegância do vilarejo onde cresci: o sofrimento.

Nesse dia, terão lugar duas coisas extravagantes; uma de caráter privado, outra de domínio público.

A primeira é o casamento de uma colega de escola. Sim, a noiva tem 15 anos, mas não fiquem escandalizados ainda. Ela vai se casar com o diretor da escola. Agora podem se escandalizar.

A segunda é a visita dos reis da Espanha, em companhia do presidente, Carlos Salinas, para inaugurar um "lienzo charro". Quê? Um estádio para a prática do esporte nacional, esse tipo de rodeio que se chama, no México, "charrería". Ah, e que não lhes escape o que diz a propaganda da prefeitura: é o maior "lienzo charro" do mundo. (Maior que o de Varsóvia ou que o de Seul, certamente.)

Naquele distante dia, 23 anos atrás, eu ainda não sou antimonarquista nem antisalinista. Perdoem-me: sou um adolescente como qualquer outro. De modo que me espremo à beira da rua porque dizem que, em frente à igreja, vai passar a comitiva presidencial; vejo os carros dos seguranças, depois os dois Chrysler New Yorker brancos. Alguma coisa acontece na dianteira, e os carros param.

Um dos New Yorkers para bem na minha frente. Olho lá dentro e vejo a careca de Salinas; em seguida, descubro que dom Juan Carlos me olha de cima a baixo. Ele me sorri sarcasticamente. Com minha gravata comprida demais e o gel que me emplastra o cabelo, devo parecer um belo espécime antropológico. Estou tão mal vestido que o rei da Espanha certamente pensa: "Nunca deveríamos ter abandonado as colônias".

Corte. Avançamos 6.104 dias e 9.157 quilômetros até Madri, capital do reino da Espanha, onde, no dia 21 de abril de 2006, o magnífico escritor mexicano Sergio Pitol recebe o Prêmio Cervantes. Durante o tempo que transcorreu, aproveitei para achar que vou ser escritor e ir morar na Espanha. Fui convidado para a cerimônia na Universidade de Alcalá de Henares porque uma professora da universidade, Teresa García Díaz, é a principal crítica literária do autor premiado.

Como da outra vez, estou engravatado, mas não faz tanto calor, e já não uso gel; digamos que, com o passar dos anos, minha figura ficou um pouco mais apresentável.

Depois dos discursos, saímos aos jardins da universidade, para o que realmente importa: tomar champanhe e comer canapés. Disfarçamos ensaiando conversas profundas e interessantes. Então vem o burburinho: não dá para não provar os canapés de "jamón" que estão servindo nas imediações de dom Juan Carlos. Nunca numa vida inteira teríamos oportunidade de voltar a comer um "jamón" como esse.

De modo que minha professora e eu nos infiltramos entre a multidão e começamos a roubar o "jamón" monárquico. Pelo amor de Deus! O "jamón" faz valer a pena o desejo de ser escritor.

Eu não sei se o rei percebeu ou não; não aprecio teorias de conspiração. Mas o fato é que ele vai andando de costas e, zás! Dá um pisão na minha professora. Os guarda-costas de Sua Majestade se materializam (não deveriam estar, como reza o nome da profissão, às suas costas?) e nos expulsam, cordialmente, do círculo monárquico.

Gasto o resto da tarde seguindo com o olhar, à distância, os movimentos de dom Juan Carlos e a dança que se desenrola ao redor dele. Apesar de ele ter ido, nesses 6.104 dias, dos 51 aos 68 anos, e eu, dos 15 aos 32, envelheceu muito melhor que eu. Com certeza foi o "jamón".


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