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História

2013: ano da República

O ativismo civil nas ruas em 1831 e agora

LILIA MORITZ SCHWARCZ

resumo

O "basta" que ecoa das manifestações atuais no Brasil encontra paralelo histórico: em 1831, milhares foram às ruas protestar contra desmandos de d. Pedro 1º e destilar insatisfações diversas, em onda que culminou com a renúncia do imperador. O episódio foi lido à época como marco fundador efetivo da nação.

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Há quem pense que a emancipação brasileira tenha se dado exclusivamente no 7 de Setembro, às margens do Ipiranga. Há quem diga também que a independência tenha trazido mudanças na estrutura fundamental do país. Há quem acredite ainda que nossa Constituição de 1823, o projeto da mandioca, tenha sido aquela que vingou entre nós.

Nenhum desses postulados se sustenta. A separação política do Brasil, naquele momento inaugural, fez-se na base do conchavo, o que implicou a manutenção do trabalho escravizado e da estrutura fundiária.

Nossa primeira constituição foi "outorgada" em 1824 pelo imperador, que reservou para si um poder acima dos demais. Conhecido como Poder Moderador e considerado neutro, era na verdade um instrumento usado com frequência por d. Pedro 1º, que tinha como prática dispensar ministros por causa de pequenos deslizes ou por mero capricho.

No entanto, o tempo parece mostrar que nem todos os atos passam imunes. De um lado, a onda revolucionária que se abateu sobre a Europa levou, em 1830, à queda de Carlos 10º, deu o trono francês a Luís Filipe de Orléans --o conhecido monarca cidadão, que se pronunciara abertamente em favor dos ideais da Revolução de 1789-- e despertou os brasileiros contra o caráter absolutista do governo de d. Pedro 1º.

De outro, o assassinato em São Paulo do jornalista Libero Badaró, alvejado no dia 20 de novembro daquele mesmo ano, acirrou ainda mais os humores da imprensa e da população.

Italiano radicado no Brasil, proprietário do jornal de oposição "O Observador Constitucional", Badaró argumentava que o governo imperial andava exercendo um autoritarismo negligente e que era mais do que oportuno o rompimento com qualquer mandatário lusitano.

O boato que correu era o de que o mandante do crime, o ouvidor Candido Japiaçu, contava com a proteção do monarca. Começou-se, então, campanha por reformas constitucionais.

É nesse contexto que d. Pedro 1º viaja a Minas Gerais, buscando conter agitações federalistas locais. Nova onda de boatos espalha a notícia de que ele preparava um golpe absolutista, planejando dissolver o Congresso.

Por isso, quando o imperador voltou ao Rio de Janeiro, a acolhida foi heterogênea. Comerciantes portugueses, partidários de d. Pedro 1º, prepararam uma grande festa para celebrar o seu retorno, em 11 de março de 1831. Já os liberais entenderam os festejos como uma ofensa à dignidade nacional.

GARRAFADAS

E assim teve início o conflito conhecido como Noite das Garrafadas, que prosseguiu até o dia 16 do mesmo mês.

Provocações, insultos, agressões e quebra-quebras de parte a parte tomaram as ruas da capital, ao lado de frases contraditórias que partiam dos diversos grupos, que ora davam "vivas à Constituição, à Assembleia e à liberdade de imprensa", ora aclamavam d. Pedro 1º como monarca absoluto.

Documentos da época mencionam ainda a participação de africanos e negros vestindo jaquetas e portando chapéus com o laço nacional ou da Federação, opondo-se todos à monarquia.

A agenda corria rápida e, no dia 17 de março, 23 deputados redigiram uma representação ao imperador, exigindo a punição dos agressores portugueses.

De nada adiantou o imperador instituir novo ministério, composto só de brasileiros, ou nomear outro comandante de polícia. Lembrou o viajante Armitage que produziu-se "um efeito elétrico" na corte e nas províncias. Era latente o estado de rebelião.

Até mesmo os moderados, que até então tentavam colocar panos frios na situação, mudaram de posição. Temporariamente unidos, moderados e exaltados, embora mantendo seus interesses diversos, faziam da deposição do imperador uma causa comum.

O fato é que, a cada dia, novas manifestações e tumultos ocorriam. Mas a gota d'água caiu quando, no dia 5 de abril de 1831, sem conseguir controlar as agitações, o ministério dos brasileiros foi demitido, e d. Pedro 1º imediatamente escolheu um outro, integrado por figuras de seu círculo íntimo.

Em moto contínuo, já no dia 6 uma multidão de 4.000 homens aglomerou-se no Campo da Aclamação, espalhando-se depois pelas ruas da cidade. Protestavam diretamente contra a atitude autoritária do imperador, mas indiretamente em relação a tudo. Era o famoso "basta".

Não faltaram novos boatos, sobre a suspensão de garantias constitucionais, a prisão de senadores e a morte de deputados. Comentava-se, cada vez mais, acerca da possibilidade de um golpe de Estado dado pelo próprio monarca, o que só aumentava a tensão.

DE CORAÇÃO

Para tentar conter o movimento, d. Pedro enviou manifestação a ser lida publicamente, afirmando que era um "constitucional de coração" e dando sua imperial palavra de que nada ocorreria.

No entanto, antes que o juiz de paz pudesse terminar a leitura, o documento foi arrancado e rasgado pelos manifestantes, os quais de pronto passaram a gritar: "Morra o imperador" e "Vivam a Federação e a República".

A pressão subiu a tal nível que o imperador resolveu jogar a última carta: abdicou em favor de seu filho, que na época contava cinco anos de idade.

No dia 7, por volta das três horas da manhã, a carta de renúncia era entregue para ser lida publicamente. A notícia foi recebida com grande entusiasmo, versos patrióticos, hinos cívicos e vivas a "Pedro 2º, imperador constitucional do Brasil".

D. Pedro 1º abdicou melhor do que reinou. Altivo, afirmou que a decisão estava tomada e encerrou o episódio: "Entre mim e o Brasil tudo está acabado e para sempre". Voltava ele então para Portugal, onde reassumiria seu antigo título português, ao qual acrescentaria o de "defensor perpétuo do Brasil".

No país, a euforia tomou conta do ambiente de tal modo que a renúncia foi entendida como um verdadeiro marco inaugural e fundador da nação.

Muitos a consideraram uma revolução exemplar, pois fora pacífica e não levara a derramamento de sangue. Outros a chamaram de "regeneração brasileira", tal seu caráter popular.

Toda uma memória foi criada em torno do evento, como se ele representasse um tempo novo: uma verdadeira independência.

O importante é que o 7 de Abril, muito mais do que o 7 de Setembro, consagrou novas práticas de cidadania e fixou o espaço público como arena política.

Qualquer semelhança não será mera coincidência. Num país que sempre nega seu passado ativista e civil, 1831 quem sabe ilumine a "eletricidade" e o sonoro "chega" que têm corrido pelas ruas do país.

Há quem diga que a história não se repete e que, quando parece fazê-lo, na verdade desnuda outra circunstância.

Desde a aprovação da Constituição Cidadã, em 1988, a sociedade brasileira vem apostando num vigoroso processo de democratização em que a passagem para a modernidade se fez acompanhar de conquistas importantes: uma ampliação do catálogo de direitos; um projeto de transformação da sociedade a partir da inclusão social de milhões de brasileiros que passaram a desfrutar de novo patamar de renda e de consumo; um novo perfil de estabilidade econômica; uma renovada disposição de afirmação de nossa soberania no diálogo com as demais nações.

CORRUPÇÃO

Mas persiste um deficit republicano na raiz da nossa comunidade política. Falta uma agenda ética capaz de transformar o sistema político-eleitoral e o comportamento partidário. A corrupção corre o risco de parecer endêmica e está associada tanto ao mau trato do dinheiro público quanto ao descontrole das políticas governamentais.

Por outro lado, os investimentos em infraestrutura, a superação dos grandes gaps sociais e o aperfeiçoamento dos serviços oferecidos não parecem avançar em ritmo compatível com a propaganda do país no exterior.

São ainda muitos os desafios para alterarmos nosso imperfeito republicanismo. Entre eles está a adoção de valores que visem à construção do que é público, do que é comum.

Frei Vicente do Salvador, considerado o primeiro historiador brasileiro, nos idos de 1620 escreveu um belo opúsculo e o chamou de "História do Brazil". O nome do país nem ao menos se escrevia com "s", e o religioso franciscano já concluía: "Nenhum homem nessa terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular".

Talvez comece nesse desafio de junho de 2013 mais um capítulo da história do Brasil. Afinal, feita a opção democrática, é hora de a República poder vingar.

"Protestavam diretamente contra a atitude autoritária do imperador, mas indiretamente em relação a tudo. Era o famoso "basta"

"São muitos os desafios para alterarmos nosso imperfeito republicanismo. Entre eles está a adoção de valores que visem à construção do que é público, comum"


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