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História

O ano em que vivemos em perigo

Em 1983, o apocalipse nuclear esteve à porta

IGOR GIELOW

RESUMO

Embora o senso comum aponte a crise dos mísseis em Cuba, em 1962, como o apogeu do conflito entre EUA e União Soviética, o período mais arriscado da Guerra Fria talvez tenha sido há 30 anos. Programas militares e simulações de ataques puseram os contendentes em alerta, o que poderia ter gerado uma guerra real.

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em 4 de março de 1983, ao meio-dia, a rainha Elizabeth 2ª dirigiu-se a seus súditos, cumprindo um "dever solene e terrível", para informá-los de que "a loucura da guerra" estava "novamente se espalhando pelo mundo".Os britânicos deveriam preparar-se para o pior momento de "sua longa história", enfrentando não "soldados com rifles", como em 1914, ou o "aviador sobre nossas cidades", como em 1940. O inimigo seria a "força letal de uma tecnologia abusada": o fogo nuclear soviético na Terceira Guerra Mundial.

O texto, revelado neste mês, naturalmente nunca foi lido. Não se sabe, tampouco, se a soberana aprovou o conteúdo do discurso, preparado por burocratas que participavam de um exercício que simulava a reação de governos à eventualidade de um conflito atômico na Europa.

Mas dificilmente a rainha teria escolhido palavras tão precisas para descrever 1983, talvez o mais perigoso momento da Guerra Fria.

O senso comum aponta 1962 e a crise dos mísseis russos instalados em Cuba como o zênite do conflito surdo entre Estados Unidos e União Soviética. Mas, 30 anos atrás, com bem menos publicidade, o apocalipse esteve à porta.

A metáfora bíblica inclusive se aplica melhor a 1983. Conforme um detalhado estudo feito pelo cientista político americano Robert S. Norris em 2012 sobre os beligerantes em 1962, a capacidade nuclear dos EUA superava em 17 vezes a da URSS à época.

Ou seja, em caso de a escaramuça evoluir a uma guerra global, era grande a possibilidade de que os soviéticos fossem dizimados antes de o planeta ser engolfado.

A Europa seria reduzida a pó, certamente, mas talvez não fosse o fim do mundo --ainda que estudos recentes mostrem que mesmo uma guerra limitada a umas cem explosões menores, iguais à que destruiu Hiroshima em 1945, pudesse alterar o clima irreversivelmente.

Vinte e um anos depois, o jogo era outro. Moscou tinha 36 mil ogivas atômicas à disposição; Washington, 23,5 mil. Em 1962, os mísseis balísticos intercontinentais perdiam em importância para os menos eficazes bombardeios, equação invertida em 1983.

O perigo "era de longe maior do que em qualquer outro momento de nossa longa história", como diz o discurso simulado da rainha para a operação Wintex-Cimex.

O exercício era bienal, mas o cenário político estava carregado. O ex-ator de faroeste Ronald Reagan (1911-2004) havia assumido a Presidência dos EUA em 1981 com uma retórica anticomunista virulenta.

Em março de 1983, cunhara o termo "Império do Mal" para classificar o adversário e lançou o programa conhecido como Guerra nas Estrelas, que visava abater foguetes com armas no espaço.

Para piorar, Reagan estava decidido a instalar os mísseis de alcance intermediário Pershing-2 na Europa Ocidental. Enquanto seus similares russos SS-20 poderiam aniquilar alvos em países aliados aos EUA em minutos e sem tempo de reação, os foguetes americanos prometiam o mesmo diretamente contra a matriz do bloco soviético.

Ambos os lados demonstravam agressividade. Em setembro, os soviéticos abateram um Jumbo da Korean Air Lines alegando que era um avião em missão espiã. No mês seguinte, os EUA invadiram a ilhota caribenha de Granada para erradicar o regime esquerdista local.

ESCALADA

As raízes da escalada estavam no ano de 1981, quando a União Soviética vivia a instabilidade do ocaso político e econômico do governo de Leonid Brejnev (1964-82). O então chefe da KGB e sucessor de Brejnev no ano seguinte, Iuri Andropov, anunciou que era certa a intenção de Washington de dar o primeiro golpe, visando decapitar o regime. O fato de os americanos estarem testando aviões perto das fronteiras soviéticas só aumentava a paranoia.

Andropov, ignorante do "éthos" ocidental, determinou o lançamento da Operação Ryan --acrônimo russo para Ataque com Míssil Nuclear. Foi o maior esforço de espionagem da Guerra Fria, e por dois anos agentes soviéticos pelo mundo buscavam provas da intenção americana de atacar, a fim de justificar uma guerra preventiva.

Segundo documentos inéditos compilados pelo pesquisador do Arquivo de Segurança Nacional Nate Jones para marcar o 30º aniversário da crise, o Kremlin temia uma reedição da invasão nazista de 1941, que pegou a liderança soviética de surpresa. O recrudescimento de Reagan e a decisão de instalar os Pershing-2 só reforçou as suspeitas comunistas.

Ainda que considerassem a iniciativa exagerada, agentes duplos como Oleg Gordievsky alertaram o Ocidente para o risco de um conflito ocorrer por má interpretação ou por alguma banalidade. Em 1979, por exemplo, uma fita de simulação de ataque acabou por engano no sistema de defesa americano. Por alguns segundos numa madrugada de novembro, o assessor de segurança nacional do presidente Jimmy Carter não avisou ao chefe que ele teria de lançar um contra-ataque real. Isso se repetia com frequência, e dos dois lados.

O próprio Andropov, cuja saúde deteriorava-se rapidamente após uma falência renal em fevereiro de 1983, tratou de alertar os EUA. Em junho, ele convidou o veterano diplomata Averell Harriman para uma conversa. No encontro, revelado este ano por Nate Jones, Andropov falou quatro vezes sobre o risco de uma guerra por "erro de cálculo" e ressaltou que Washington se aproximava perigosamente da "linha vermelha".

Após o exercício para o qual o discurso da rainha foi preparado, houve a sequência de três simulações militares da Otan (a aliança militar ocidental) nas quais a tal linha foi tocada. Nas duas primeiras, Autumn Forge e Reforger, houve exercícios de guerra convencionais, com deslocamento de 40 mil homens, simulando a fortificação da Alemanha Ocidental.

Os jogos culminaram no Able Archer 83, iniciado em 2 de novembro, no qual era simulada a transição de um conflito convencional para uma guerra química e nuclear. Houve inovações, como ataques virtuais com Pershing-2, o uso de criptologia avançada e a participação de líderes como a premiê britânica Margaret Thatcher (1925-2013) e o chanceler alemão Helmut Kohl no exercício.

Só que o Ocidente não sabia que os soviéticos estavam de orelha em pé pela Operação Ryan. Entre 8 e 9 de novembro, conta Gordievsky, a KGB enviou alerta máximo pedindo informações a seus agentes. Aviões foram mobilizados na Polônia e na Alemanha Oriental, e houve movimentos de tropas no Báltico e na Tchecoslováquia.

Não se sabe se os mísseis soviéticos chegaram a ser preparados ou não. De todo modo, os novos papéis desencavados por Jones e outros pesquisadores indicam que o fim do exercício, no dia 11 de novembro, acalmou Moscou.

Andropov acompanhou tudo de uma cama de hospital, de onde despachou de agosto até fevereiro de 1984, quando morreu e foi substituído por outro idoso doente, Konstantin Tchernenko (1911-85).

O clima, contudo, começara a desanuviar --levaria pouco mais de um ano para que Mikhail Gorbatchov levasse a distensão ao Kremlin. No mês seguinte à morte de Andropov, Reagan chamou seu embaixador em Moscou, Arthur Hartman, e perguntou se o medo soviético era real. Não se sabe a resposta, mas a retórica de Reagan nunca mais foi a mesma.

Ele pode não ter ouvido Andropov em junho de 1983, mas prestou atenção a um alerta vindo do seu próprio "métier": o cinema.

Em 5 de novembro, Reagan assistiu a uma pré-estreia do telefilme "O Dia Seguinte", que seria exibido na rede ABC 15 dias depois. Em pleno Able Archer, o presidente viu as ainda hoje impressionantes imagens de um ataque atômico aos EUA. Escreveria depois em seu diário: "O filme foi muito eficiente e me deixou muito deprimido".

A Guerra Fria acabou, mas Estados Unidos e Rússia ainda possuem armas suficientes para arrasar o planeta, o que torna mais que bem-vindos os esforços de reconstituição da crise de 1983.

Não só. Israel, Irã, Índia, Paquistão e Coreia do Norte estão aí para provar que tensão política e gatilhos nucleares não são uma boa combinação, sob o risco de deixar como única alternativa a receita da rainha: "Rezar pelos homens de boa vontade, onde quer que eles estejam".


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