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O caso da casa de farinha

O auto inacabado de João Cabral de Melo Neto

ARMANDO FREITAS FILHO

RESUMO "Notas sobre uma Possível 'A Casa de Farinha'", volume fac-similar a sair em outubro (Alfaguara), reúne estudos para um poema deixados por João Cabral de Melo Neto (1920-99) ao morrer. No prefácio à obra, o poeta Armando Freitas Filho fala de como os manuscritos revelam o processo criativo do autor de "Morte e Vida Severina".

João Cabral falava que, quando morresse, só o que estivesse publicado valeria. O resto, não. Mas num belo dia, em meados dos anos 1980, entregou a sua filha Inez um pequeno fichário escolar, de capa castigada, dizendo-lhe que não tinha conseguido terminar e que ela fizesse algo com as anotações.

Era o planejamento manuscrito, passo a passo, de um longo poema que vinha ruminando desde 1966, da estirpe, da garra, poética e social, de "O Cão sem Plumas", "O Rio", "Morte e Vida Severina", "Dois Parlamentos", "Poema(s) da Cabra" e "Auto do Frade", para só ficar com os mais conhecidos.

A "Casa de Farinha", agora, abre as folhas de suas portas graças à transcrição cuidadosa e competente de Inez, mostrando os bastidores da criação, não só do texto mas do pensamento do poeta. A sensação é a de que estou lendo os originais, por cima do ombro da filha, assim como ela os vê por cima do ombro do pai e acaba por pegá-lo pela mão, trazendo-o inédito, novo em folha, em plena faina e forma, até nós, leitores.

Como os poemas citados anteriormente (a partir d' "O Rio"), sua dicção é calcada na matriz da literatura de cordel, que João Cabral menino lia para os empregados da família. A apropriação feita por ele dessa "fôrma" da poesia popular nordestina tem notável rendimento, pois ele incrementa, ao didatismo inerente a ela, sua voz de poeta maior.

A bela caligrafia cabralina, encontrada no fichário, pertence a uma ilustre "Família de Letras", que, a meu ver, se irradia assim:

Machado puxa o fio

da sua caligrafia

até que a mão de Graciliano

o alcance, deixando-o

então, com Carlos Drummond

que passa para

Antonio Candido, e deste chega

a João Cabral, unindo-os

na mesma linhagem

com a linha do seu novelo.1

Essa escrita vai nos contar, então, com a visão crítica ferina do primeiro, a secura sem rodeios do segundo, o sentimento do mundo do terceiro e a interpretação luminosa do quarto, a saga anônima de carregadores, descascadoras e raspadores na sua luta para preservar um modo de ser e de estar profundamente enraizado, o ganha-pão suado que sustenta o esforço de suas vidas e família.

Os personagens encontram-se ameaçados pelo desemprego iminente, fruto da lógica implacável de uma modernização não preocupada em preparar medidas viáveis de inclusão no seu processo ou mesmo alternativas em outros campos.

A mudança no ramerrão dos dias carrega, como não poderia deixar de ser, a dúvida e a incerteza sobre o futuro. No disse me disse dos personagens, grupos se opõem, radicalmente: os que veem a mudança um perigo versus os outros, que a entendem como a salvação possível.

A casa de farinha, aberta e escancarada, por obra do poeta, e mesmo inacabada, talvez até por isso mesmo, parece refletir em tempo real os acontecimentos --do estabelecimento em perigo, prestes a esfarinhar-se -- e o ir e vir da inspiração de quem os descreve e pesquisa, e desde o seu começo mostra soluções dramatúrgicas com muitas possibilidades de desenvolvimento como, por exemplo, a hipótese engenhosa de figurar os estados de espírito dos antagonistas por meio dos seus afazeres no trabalho cotidiano, que os molda de acordo com a prática do seu exercício; o muito bem apresentado, de maneira irônica, nessas primeiras anotações, dr. Sudene (a princípio parecendo ser um personagem de coloração beckettiana, mas o poeta assinala, com ênfase, não o querer assim), que está sempre por chegar, podendo metamorfosear-se, mais à frente, num ente duplo com o Coronel mandachuva, tipo obrigatório nessas regiões agrestes.

Tanto um quanto o outro aparecem com suas identidades mescladas nas discussões dos trabalhadores, pois "há todos os matizes sobre cada um deles". Assim sendo, os prós e os contras, o mix "de seda e péssimo" de ambos podem muito bem se entrelaçar, a posteriori, numa entidade burocrática e impessoal, uma espécie de "deus ex machina".

A marcação do auto, pois se trata de um auto, gênero dramático de cunho moral, místico ou satírico, com um só ato, se fará não através de cenas, mas de rounds, rubrica que configura o clima de confronto entre as partes, podendo as mesmas ser caracterizadas, como imagina o poeta, com inventividade, por meio de "um bloco, um ideograma. O conflito nasce da sucessão e opiniões, ideogramaticamente. É como se cada grupo falasse numa língua diferente da do outro". Não sem observar, pensando alto, se esse recurso seria factível em linguagem teatral, entrevendo novidade nele.

A essa altura, convém dizer que esse extenso e exigente planejamento que antecede o próprio poema não é estranho na composição poética e nos livros de João Cabral.

Em mais de uma entrevista ou em conversa, ele declarou que prefere preparar de antemão o arcabouço do livro, o seu alcance, do que escrever aleatoriamente os poemas que irão lhe dar volume.

Um exemplo de excelência desse método tão seu é "A Educação pela Pedra", primoroso em sua organicidade impecável, prova definitiva de que o preconcebido pode ser natural desde que corresponda à necessidade íntima, urgente e verdadeira de quem a sentiu e idealizou. Sem sombra de dúvida, esse escreviver marca João Cabral de Melo Neto, é o que assegura a coesão, em crescendo, de sua obra: de "Pedra do Sono" até "Andando Sevilha" "pode se ter a impressão, fantasiosa e lúdica, de que tudo foi escrito numa tacada só, como sugiro neste "Verbete para João Cabral":

Escreveu para sempre, escreveu [em série sempre o primeiro e último poema, ao [mesmo tempo. Da folha inicial à derradeira, [sem saltar página em linguagem de protocolo, não [espetacular.

Diplomática, mas em código, [pessoal e intransferível, que se passava [a limpo automaticamente, pelo gráfico [impecável da caligrafia que ocultava, [embaixo do gesto dessa ginástica "" arte, verso de [prumo e rigor. Tudo num dia só, didático, sob sol, [a ferro e fogo ou em dias que não diferiam, [circulares: no fundo eram apenas um, em várias [vias e versões descortinado, sem nenhum [excesso de céu.2

A "Casa de Farinha", aqui esboçada, ainda no emboço, melhor dizendo, é um puxado que se encaixa adequadamente no corpo da obra: pode vir a reboque, mas começa a desenvolver impulso próprio e obstinado, com a força de sempre.

Além de ser o tema tratado no poema, um dos modos do fabrico da farinha, apesar de inusual em Pernambuco, é através do tipiti, cesto feito de fibras, usado para espremer e secar a massa de mandioca manualmente, o que acaba sendo uma analogia perfeita com o jeito de escrever cabralino: enxuto ao extremo. A farinha, quando aparece, é a necessária e exata para ser usufruída sem desperdício.

Uma pequena amostra da qualidade do resultado provisório dessa produção pensada, pesada, calculada (e se não aumento a dose da exposição e da análise o faço intencionalmente para não estragar a surpresa e o prazer da leitura), aparece em estado datilográfico quando um verdadeiro estudo do "bom-dia" se apresenta, com todas as suas inquietudes transparecendo no tempo incerto de sua duração, no "Início possível de Casa de Farinha'":

Os Carregadores

"" Bom bom-dia, minha gente.

"" Bom dia para os presentes.

"" Bom dia, futuramente.

"" Bom dia ainda, no ventre

As mulheres de descascar

"" Bom dia tem que dizer

quem chega a todo presente.

"" Bom-dia é como Dizer bom dia é tirar

o chapéu, cumpridamente.

"" Bom-dia não antecipa

o dia que espera em frente.

"" Nem bom-dia tem a ver

se é sol ou chuvadamente.

Em 11 de outubro de 1985, 19 anos depois das primeiras anotações, João Cabral, portanto, começa a erguer a "Casa de Farinha". E, como sempre, em grande estilo.

Nessas duas estrofes já se pode sentir a tensão que vem implícita no dia a dia do futuro daquela casa condenada. O manuscrito segue o mesmo destino ruinoso.

Como a visão do poeta, a letra começa a falhar, desanda, ainda consegue reaprumar-se, ao se passar a limpo, mas se interrompe no datiloscrito. Algumas palavras já não são discerníveis, há claros na mancha gráfica transcrita.

Inez, que já tinha passado à máquina os seus dois últimos livros, "Sevilha Andando" e "Andando Sevilha", cumpre agora o que o pai lhe havia pedido no começo dessa apresentação e socorre a ele e ao seu poema por tantos anos elaborado, oferecendo a nós, enfim, esse rascunho que se organiza por suas mãos no espaço vivo da leitura, com o fac-símile do manuscrito e sua transcrição espelhados, inspirando o que as linhas a seguir, dedicadas a ela, dizem:

Certa poesia, mesmo quando [impressa guarda o ininteligível do [pensamento ou da caligrafia original, [e a compreensão precisa ser desentranhada [da "letra de médico". O que é dito, o não dito, tem [que ser decifrado ou adivinhado, mas nem tudo [se esclarece: há mal-entendidos, interditos, [palavra e sentido incompreensíveis, lacunas, [que perduram e perguntam sem remédio, [sem receita.


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