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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Lito

SOBRE O TEXTO O trecho aqui publicado é parte do romance "Falar Sozinhos", do argentino Andrés Neuman. No livro, Mario, o pai, leva Lito, o filho, a fazer uma sonhada viagem de caminhão. Os fatos da estrada, vividos por pai e filho, e a espera, por parte da mãe, Elena, são narrados em capítulos alternados, na forma de monólogos interiores de cada um dos personagens. O romance deve sair em novembro pela Alfaguara.

ANDRÉS NEUMAN
tradução MARIA ALZIRA BRUM LEMOS

Chegamos a Veracruz de los Aros e então volta a acontecer. O céu fica nublado. Assim. De repente. No início achei que era coincidência. Não. Não mesmo. Fiz um monte de testes. E acontece. Se eu me concentro bastante, o clima muda. Não sei bem se esse poder é coisa minha ou do Pedro. Mas que acontece, acontece. Talvez seja por isso que o caminhão se chama assim. São Pedro não era o que andava por aí com as chaves do céu? Me preocupava que meu pai risse de mim e tudo mais. Conheço-o muito bem. Ainda bem que agora me leva muito mais a sério. É o bom de ter dez anos e compartilhar caminhão. Então lhe contei minha descoberta. E meu pai fez o teste. E viu que era verdade.

Depende do estado de ânimo. Se tudo corre bem, temos sol. Quando começo a me aborrecer, fica um pouco nublado. Se fico ansioso, há vento. Se fico bravo e choro, chove.

Outro dia, por exemplo, meu pai ficou furioso porque coloquei os braços para fora da janela. Fico com medo quando meu pai grita assim comigo. E nessa noite houve relâmpagos. Tem que ter paciência, é claro. O céu não muda na hora que eu penso. É como diz o meu pai: é preciso dirigir muito para se mover um pouco. Mas, se a gente insiste, chega. Como a hora do almoço.

Digito no telefone do meu pai:

Oi ma td bem? Aki sup bem! Hj passamos em mtos lgares incrvs n se preokpe o pa n corre :-) mtos bjs t amo

Minha mãe responde:

Meu querido, muito obrigada pela mensagem. A mamãe está bem, mas com muita saudade. Tome cuidado ao subir e descer do Pedro. Hoje fui à piscina. Você é o meu sol, beijinhos para o pai.

A mãe não sabe usar o telefone, rio. Como não? -- diz o meu pai. Se ela o usa todos os dias. E tem telefone desde antes de você nascer, artrópode resmungão. Certo, respondo, mas não sabe, não. Sempre manda mensagens com 20 ou 30 letras a mais. Assim fica mais caro. E ela desperdiça umas cem letras. Em algumas coisas, diz meu pai, não é preciso economizar. E você, continuo, também não sabe. Ah, caramba, desculpe, diz ele, por quê? Veja só, digo, em que parte do menu estão os jogos? Isso é trapaça, reclama ele. Pergunte por alguma coisa que me interesse usar. Está bem, está bem, respondo. Como se faz uma cópia da sua lista de contatos? Ele fica calado. Está vendo só? -- digo. Depois levanto os braços e solto ar como se acabasse de marcar um gol. Artrópode! -- diz meu pai.

Paramos outra vez em um posto de gasolina. Meu pai quer que eu faça xixi com frequência. Como se fosse um menino de oito ou nove anos. Diz que não é bom segurar. Que convém mijar desde o começo. E eu, como bebemos tanta coca-cola, afinal alguma coisa mijo. Descemos. O sol não me deixa ver bem. Meu pai está de óculos escuros. Aponta para umas portas de metal. Franzo o nariz para vê-las.

Quem chegar por último ao banheiro, grito, limpa os vidros do Pedro. Meu pai ri e diz que não com a cabeça. Tem medo de que eu ganhe, né? -- provoco. Tenho medo de que com o esforço você se mije pelo caminho, responde. Medroso, medroso! -- recrimino. Urso, urso! -- ele brinca. Não seja malvado, reclamo. E você não seja tão competitivo, diz ele. Paro de caminhar. Levanto a cabeça. Coloco uma mão nas sobrancelhas e lhe peço: por favor, por favor, por favor. Meu pai fica parado. Sussurra. Olha para a frente. Põe a mão na cintura. Volta a suspirar. Você conta, diz em voz baixa. Grito: um, dois! Depois a única coisa que ouço é o barulho da sola dos meus tênis.

Toco a porta do banheiro. Eu. Primeiro. No início penso que meu pai me deixou ganhar. Isso sempre me dá raiva. Desta vez é diferente. Porque ele correu mesmo e está todo agitado. É verdade que no ano passado meu pai teve aquele vírus. E ainda não está como antes. Ele diz que sim. Eu sei que não. Mas agora tem menos barriga. De modo que deveria ser mais rápido do que quando estava gordo. Não sei. Ganhar, ganhei. Este verão está sendo incrível. Assim que começarem as aulas vou procurar o idiota do Martín Alonso, que sempre me ganha na corrida. Saio do banheiro. Meu pai não. Ultimamente demora bastante. E quando eu demoro um pouco, ainda reclama. Também. Com o que sai dele não é de se estranhar. Meu pai caga muito e duro. Prestei atenção. Finalmente aparece. Está com o rosto e a camisa molhados. Boa ideia. Também quero.

Atravessamos Sierra Juárez. Meu pai não encontra a rádio que ele gosta. Então me deixa escolher a música. Estou contente e a temperatura sobe. Isso prova mais uma vez os poderes do Pedro. Pensei bem e percebi que deve ser ele. Melhor dizendo, somos nós dois. É preciso que o caminhão ande e eu esteja dentro para que a coisa funcione por completo. Meu pai olha o mapa todo o tempo. Tudo bem? -- pergunta. Ótimo, respondo. Já deveríamos estar em Fuentevaca, diz ele. Pedro está cansado e vai mais lento, rio. O meu pai não acha graça. As piadas dele são piores.

Ligo o telefone para jogar um pouco. Escolho o golfe. Ainda não entendo bem as regras. Mas cada vez faço mais pontos. Lito, diz meu pai, esta noite é melhor dormirmos em um hotel, viu? Parece que há um aqui perto. Precisamos tomar banho. E descansar bem. Porque amanhã (a bolinha faz um efeito muito estranho, aumenta, voa até acima de tudo como se atravessasse a tela, desaparece, o contador de metros continua subindo, as árvores se inclinam um pouco à direita, o vento de lado complica a jogada, a bolinha volta, fica pequena, cai em câmara lenta, ricocheteia uma, duas, três vezes, balança cada vez mais devagar, como será jogar na serra? Existirá o golfe de montanha? A bolinha toca o green, se aproxima, já aparece a bandeirola, mas que toque, senhoras e senhores! Desloca-se mais alguns metros, não, acho que não vai chegar), ei, filho, ei, está me ouvindo ou não? Sim, sim, respondo.


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