Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrissima

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Artes plásticas

Um estranho ser coletivo

Com muitas pernas, a Bienal de SP se move

RESUMO Curador da Bienal de São Paulo deste ano escreve sobre como a exposição mudou ao longo do tempo até chegar à sua 31ª edição. Equipe curatorial propõe que a mostra, a ser aberta no dia 6/9, pense o contemporâneo por meio de obras feitas especialmente para o evento e contando com a interação do público visitante.

CHARLES ESCHE
tradução CLARA ALLAIN

E SE A BIENAL de São Paulo não existisse? A cidade teria que inventá-la? Tendo em vista todos os megaeventos recentes no Brasil, é fácil enxergar como garantidas algumas coisas que já existem. O fato de a Bienal de São Paulo ser a maior nesta parte do mundo e uma das mais respeitadas internacionalmente é uma conquista que não se configurava como óbvia quando ela começou, em 1951.

Ela foi sendo construída ao longo dos anos com base na premissa possivelmente improvável de que indivíduos ricos deveriam sentir-se responsáveis por apoiar um evento de arte público, aberto à cidade toda. Embora as leis tributárias estaduais hoje facilitem o financiamento de suas atividades por empresas, ainda é o engajamento financeiro e emocional de indivíduos que mantém a Bienal, ano após ano, não obstante todos seus altos e baixos.

Tendo me mudado para São Paulo no ano passado para assumir o desafio da curadoria da 31ª edição da Bienal, eu e os outros membros da equipe nos sentimos inspirados pela história da instituição. Enquanto a Bienal é, em essência, um projeto de elite, sua sobrevivência sempre dependeu do fato de gerações sucessivas terem compartilhado a paixão pelo aspecto público da arte e a ideia de um direito comum à cultura contemporânea. Essa continua sendo uma ideia radical, possivelmente mais ainda do que era em 1951, e o fato de a Bienal representá-la hoje é algo que merece ser festejado.

No entanto, ao mesmo tempo em que a sobrevivência da Bienal é crucial para seu significado mundial, ela também tem sido suficientemente flexível para mudar com os tempos. Se originalmente se tratava de trazer a cultura europeia moderna ao Brasil, isso mudou com as primeiras Bienais de Walter Zanini e, por fim, com a Bienal de 1998, de Paulo Herkenhoff, erguida em torno do tropo fundamentalmente brasileiro da antropofagia. Se originalmente ela seguiu o modelo de Veneza, com pavilhões nacionais competitivos, em 2008, sob a curadoria de Lisette Lagnado, ela foi capaz de despir-se do pensamento nacionalista, à diferença de sua prima mais velha.

Essa capacidade de reinventar-se foi o outro incentivo importante para que a equipe de curadoria atual se engajasse com a Bienal e procurasse construir uma 31ª edição que fosse além de tudo o que já foi realizado.

FIM DO MODERNO Em 2014, o mundo passa por tempos difíceis. As guerras proliferam, os conflitos se intensificam, e sociedades em todo o planeta parecem dilaceradas por divisões étnicas, econômicas e religiosas. Paradoxalmente, porém, os povos do mundo nunca antes foram tão interligados. Nossa capacidade humana de pensar, e pensar juntos, é ampliada infinitamente pelo uso das mídias sociais e das tecnologias da comunicação. Cada um de nós conhece, muito mais que antes, o sofrimento e a alegria do outro.

Neste mundo contemporâneo, os velhos modelos de funcionamento das coisas são cada vez menos válidos. Especialmente a ideia do "moderno", como modo de pensar tudo, desde a arte e a ciência até a política e a sociedade, já foi superada.

Em última análise, o pensamento moderno dividiu e separou o mundo em um número excessivo de atividades especializadas. Ele perdeu o senso de conexão e equilíbrio. Na arte, o moderno foi responsável por muitas descobertas belas e profundas, mas é hora de inscrevê-lo nos livros de história. Estamos vivendo outro tempo --um tempo perturbador, possivelmente, um tempo de transição para um novo conjunto de valores.

A este momento de transição podemos dar o nome de contemporâneo. É um tempo de ações coletivas mas também de conflito; de uma imaginação novamente inspirada e de um desejo de transformação profunda que ainda não pode se realizar. Este é o tempo presente, o momento atual, que buscamos captar na 31ª Bienal.

Na exposição, haverá obras de arte de todas as formas, tamanhos e técnicas. Alguns trabalhos lançam um olhar de "outsider" sobre a história moderna, enquanto outros olham para o futuro, na expectativa de que muitas coisas sejam diferentes. O que eles compartilham é um ponto de vista voltado a relatar a experiência da vida como ela é, e não como deveria ser, segundo as expectativas modernas.

Há também um interesse comum pelo poder do mágico e do espiritual para dizer verdades que a ciência moderna esqueceu --e um desejo de aproximar-se desses aspectos da vida que são marginalizados ou ignorados na corrida para alcançar uma forma particular de sucesso econômico.

RETORNO Essa preocupação com o contemporâneo requer interação e retorno do público da Bienal. Assim como em seu início, esta Bienal tem o compromisso de compartilhar com o maior número possível de pessoas uma visão da arte e de suas capacidades.

Em nosso caso, isso significa dar espaço às muitas crianças que vão visitar a Bienal e às discussões e perguntas do público, tanto no espaço da exposição quanto nos diferentes blogs e plataformas visuais que nos conectam com nossos visitantes. Também estamos procurando humanizar a escala do vasto prédio do Pavilhão.

É apropriado, sob muitos aspectos, que esta Bienal aconteça no prédio criado por Oscar Niemeyer, menos de dois anos após sua morte. Enquanto procuramos fazer a transição para o contemporâneo, as relíquias do moderno inevitavelmente nos cercam. É nossa tarefa reutilizar essas relíquias com novas finalidades, neste caso um edifício moderno maravilhoso para uma exposição de arte contemporânea. Ao dividi-la em diferentes zonas e procurar que as obras estabeleçam relações dinâmicas, esperamos que o edifício ganhe vida como um espaço destinado especificamente à arte, e não apenas como um enorme recipiente que precisa ser preenchido.

O ambiente social em que esta Bienal acontece também é específico e pede uma resposta particular. O Brasil se encontra em transição, ele próprio, com a Copa do Mundo para trás, a eleição quase chegando e a Olimpíada no horizonte. O crescimento econômico dos últimos anos, somado aos protestos recentes, gerou expectativas que dificilmente desaparecerão.

O modo de se relatar a história no Brasil está sendo revisto, e o país está falando com o mundo de modo diferente e muito mais claro que no passado. A 31ª Bienal respondeu oferecendo uma plataforma a novas vozes artísticas, e não reproduzindo aquilo que já é fartamente conhecido.

O que isso significa, na prática, é que mais de 75% dos trabalhos da Bienal foram criados para a exposição, enquanto os trabalhos mais antigos são dos artistas que parecem ser mais relevantes às condições que encontramos em nossas pesquisas aqui.

Tendo viajado por vários lugares do país e promovido reuniões abertas com as comunidades artísticas de oito cidades, pudemos encomendar novas obras, tendo o Brasil contemporâneo em mente, pedindo a artistas, tanto brasileiros quanto estrangeiros, que pesquisassem seus interesses não apenas em São Paulo mas também no Amazonas, no Nordeste ou nas minas de Minas Gerais.

SER COLETIVO O símbolo da Bienal deste ano é um estranho ser coletivo, com muitas pernas. Esta figura representa, para nós, o contemporâneo. Ela sugere o viajar, mas não aponta para uma só direção; parece cega, mas aparenta confiança em relação ao rumo que está seguindo; poderia ilustrar uma história, mas retrata um momento isolado; retrata uma criatura impossível, mas é imediatamente reconhecível. Essas são exatamente as qualidades das "coisas que não existem", que são a parte imutável do título da Bienal.

Os trabalhos presentes na exposição sugerem os paradoxos e incoerências da vida. Não são utópicos nem ideais. Em vez disso, ganham vida pelo fato de serem vistos e vivenciados como aquilo que são. O que oferecem, portanto, são "insights" sobre um tipo diferente de futuro, no qual aquilo que se encontra na periferia da percepção pode se mover para o centro. Eles abraçam a diversidade e toleram o velho ao lado do novo. Misturam fé e ceticismo, otimismo e pessimismo, de maneiras que são muito humanas.

Retornando à pergunta inicial, não sei se a cidade quereria inventar uma Bienal assim. Hoje os grandes eventos são controlados, direcionados e mais precisamente voltados às "coisas que existem". É tradição da Bienal proteger o espaço destinado a criar algo instigante, radical, que, esperamos, valha a pena --uma exposição que procure olhar além do horizonte, além do mercado, e indagar sobre o que acontece quando coisas e ideias novas surgem, de repente, diante de nossos olhos.

-

Nossa capacidade humana de pensar juntos é ampliada pelo uso das tecnologias da comunicação. Cada um de nós conhece o sofrimento e a alegria do outro

Os trabalhos sugerem os paradoxos e incoerências da vida. Não são utópicos nem ideais, mas ganham vida pelo fato de serem vistos e vivenciados como aquilo que são


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página