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New York Times

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Projeto resgata memórias

Por SOMINI SENGUPTA

BERKELEY, Califórnia - Quando era criança, Guneeta Singh Bhalla ouviu de sua avó uma história assustadora. Em agosto de 1947, quando a Índia britânica estava sendo dividida entre a Índia independente e o Paquistão, sua avó fugiu de Lahore, região que em pouco tempo se tornaria do Paquistão. Levando seus três filhos pequenos, olhou pela janela do trem e viu corpos espalhados ao longo dos trilhos. Essa recordação a assombrou até sua morte.

Durante anos, Bhalla lamentou não ter gravado a história da avó. Foi isso que a incentivou a começar a gravar as memórias de outras pessoas sobre aquele tempo.

Conhecido como Arquivo da Partilha de 1947, o projeto foi iniciado em Berkeley dois anos atrás. Dezenas de voluntários gravaram em vídeo 647 histórias orais de pessoas hoje residentes em mais de sete países e as armazenaram digitalmente. Trechos de algumas das entrevistas podem ser encontrados no site do projeto, www.1947partitionarchive.org.

Na partilha, em que a Índia britânica foi dividida segundo critérios religiosos e políticos aproximados, mais de 10 milhões de pessoas foram deslocadas. Hindus e sikhs fugiram para a Índia. Muçulmanos foram para o Paquistão. Cristãos, judeus e zoroastrianos tiveram a opção de escolher onde viver como minorias. Os mortos foram difíceis de contabilizar. As estimativas variam entre 250 mil e 2 milhões de mortos.

O projeto de história oral é o primeiro de seu tipo. Como a maioria das testemunhas oculares já morreu -a maioria das pessoas entrevistadas está na casa dos 70 ou 80 anos-, o projeto ganhou urgência. Bhalla contou que, das cem pessoas que ela entrevistou, pelo menos 20 morreram desde então.

Dirigido a partir da Universidade da Califórnia em Berkeley, o arquivo pretende despachar 20 voluntários neste ano a várias cidades no sul da Ásia para colher depoimentos enquanto as pessoas que testemunharam os fatos em primeira mão ainda estão vivas.

Como Bhalla, a maioria das pessoas que colhe os depoimentos é duas gerações mais nova. Muitas delas são americanas de origem asiática. Elas vêm visitando mesquitas e templos em vários pontos dos Estados Unidos para pedir depoimentos de idosos, gravando-os com câmeras de vídeo e smartphones. Alguns dos entrevistados nunca tinham contado suas histórias antes.

Na Califórnia, Bhalla conheceu dois homens -um deles sikh, o outro muçulmano- que passaram a infância em vilarejos vizinhos no atual Estado de Punjab, na Índia. Ali Shan, muçulmano que fugiu para o Paquistão, vive em Fremont, ao sul de Berkeley. Hardev Singh Grewal, sikh que permaneceu na Índia, vive na vizinha Union City. Bhalla perguntou se eles gostariam de se conhecer. Os dois disseram que sim.

Numa noite de sábado, eles tomaram chá e comeram samosas (pastéis indianos) na casa de Grewal. Ali Shan, 72, estava inicialmente rígido e formal. Nas primeiras duas horas, eles trocaram recordações sobre uma feira anual que acontecia em Jurrahan, onde Shan viveu no passado. Lembraram os nomes das escolas locais. Aos poucos, as histórias mais sofridas foram vindo à tona. Shan contou a Grewal que uma turba enfurecida matou sua mãe e seu irmão a facadas diante de seus olhos, quando ele tinha seis anos, e que, inexplicavelmente, um homem da tuba o levou para casa.

Grewal, 76, chegou mais perto de Shan e lhe deu alguns tapinhas no ombro. Os olhos de Shan se encheram de lágrimas. Ele continuou a história. Contou que passou meses vivendo com a família do desconhecido, até que um tio o levou ao Paquistão.

Grewal recordou que os líderes de seu vilarejo ofereceram salvar as vidas dos moradores muçulmanos desde que eles se convertessem ao sikhismo. "A intenção era boa, mas não deu certo", disse.

A proposta não os salvou. Eles foram atacados durante os preparativos para a conversão. Grewal não faz ideia de quantos foram mortos, mas sabe que houve corpos suficientes para encher várias carroças de bois e uma vala comum. Grewal recordou, também, que seu irmão mais velho trouxe para casa três de seus amigos de escola, todos muçulmanos feridos no ataque. Eles ficaram hospedados na casa de Grewal até terem condições para viajar ao Paquistão. Ele não tem ideia do que aconteceu com os colegas.

Grewal disse: "Quero lhe perguntar, Ali: você tem pesadelos?"

Shan sacudiu a cabeça. "A partir do momento em que perdoei as pessoas que mataram minha família, virei um homem novo."


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