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New York Times

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Cidade improvisada

Refugiados sírios transformam acampamento na Jordânia

POR MICHAEL KIMMELMAN

Campo de refugiados Zaatari, Jordânia

Um jovem comerciante sírio parou na barbearia de Ahmad Bidawi para um corte de cabelo. Em meio ao ruído dos ventiladores, ouvia-se música. Do lado de fora, na principal via comercial de um dos maiores acampamentos de refugiados do planeta, trabalhadores empurravam carrinhos de mão carregados de madeira e de eletrodomésticos, abrindo caminho entre as pessoas aglomeradas diante das lojas.

A cena parecia distante do tumulto de que Bidawi e outros fugiram. Mas a Síria fica a apenas alguns quilômetros de distância. Do acampamento, os disparos de artilharia podem ser sentidos. O agricultor Bidawi chegou com a mulher e os filhos ao acampamento um ano atrás. Sua filha mais nova morreu aqui, por efeito do gás lacrimogêneo disparado por seguranças que tentavam conter um tumulto. Todo mundo em Zaatari tem histórias sobre casas destruídas, parentes mortos e maus momentos.

Mas agora, em ritmo impressionante, Zaatari está se tornando uma cidade informal: uma metrópole em estilo faça você mesmo que abriga cerca de 85 mil pessoas. Estão surgindo bairros, classes sociais, uma economia em crescimento e algo que se assemelha à normalidade, ainda que todos os refugiados anseiem por voltar aos seus lares. Uma agência de viagens recolhe passageiros no aeroporto. Uma pizzaria delivery tem um sistema de endereços para os moradores do acampamento que as autoridades locais estão se apressando a copiar.

A mudança, acelerada pelo caos na região e pelo espírito empreendedor dos sírios, ilustra um esforço básico da civilização, o da urbanização, que até mesmo nos momentos mais desesperados leva as pessoas a deixar sua marca onde quer que terminem por morar. A evolução de Zaatari também aponta, de modo mais amplo, para toda uma nova maneira de pensar sobre uma das crises mais prementes do planeta.

Em junho, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados reportou que, em 2013, o número mundial de refugiados superava os 50 milhões, o mais alto desde a Segunda Guerra Mundial, e esse total foi substancialmente elevado pelo conflito na Síria. Devemos acrescentar a ele, agora, o milhão de refugiados iraquianos que surgiu nos primeiros meses deste ano.

As vastas migrações forçadas aceleraram as discussões sobre a necessidade de tratar os acampamentos como mais que centros transitórios de população. Trabalhadores assistenciais e outros estão considerando os acampamentos de refugiados como potenciais incubadoras de centros urbanos, lugares que podem crescer, se desenvolver e até mesmo beneficiar os países que os recebem -lugares concebidos desde o começo para atender às necessidades de longo prazo desses países, em lugar de serem um fardo para eles.

Essa forma de pensar é conduzida pela realidade. Famílias sírias e iraquianas, desprovidas de um percurso real para a paz porque seus países estão se desfazendo, precisam encarar a perspectiva de um exílio prolongado.

"Pode-se definir como transitório um lugar como Zaatari", diz Don Weinreich, sócio da Ennead Architects, de Nova York. O Ennead e outros estão reimaginando como e onde os acampamentos de refugiados deveriam (ou não deveriam) ser construídos.

"Mas o desenvolvimento orgânico propelido pelos refugiados é incontrolável", diz Weinreich. "Um acampamento transitório custa mais a longo prazo. Quer você encoraje o crescimento na direção certa, quer o combata, ele vai acontecer, de qualquer modo".

É isso que torna esse imenso acampamento no deserto da Jordânia um caso tão interessante de estudo sobre o desenvolvimento urbano -ou, como diz Kilian Kleinschmidt, o funcionário da ONU encarregado de Zaatari, "o mais fascinante projeto do planeta, no que tange ao desenvolvimento de acampamentos".

Não que Zaatari se pareça com o centro de Amã. É um lugar esquálido, desolado, com alta incidência de crime. A maioria das empresas e lojas opera sem licença. Boa parte do acampamento continua a ser um aglomerado de barracas. Ainda assim, ele difere muito de um acampamento como Azraq, que a ONU e a Jordânia abriram recentemente para os refugiados sírios, ou dos acampamentos operados na Turquia pelo governo turco, que têm instalações modernas, mas foram concebidos para reprimir o urbanismo de baixo para cima que mudou Zaatari.

Azraq é isolado e estritamente policiado, com barracas de metal dispostas em ordem militar, pisos de terra, sanitários públicos que causam vergonha e sem eletricidade. Cerca de 11 mil sírios estão encalhados no acampamento, planejado para abrigar mais de 100 mil pessoas.

Os refugiados em Azraq, famílias com crianças pequenas, vivem aterrorizados à noite, desprotegidos contra escorpiões, ratos e cobras, e dizem ter escapado de um pesadelo para cair em outro.

Em contraste, as partes mais antigas de Zaatari agora têm ruas, algumas ladeadas por postes de eletricidade. As casas mais elaboradas foram construídas usando barracas, abrigos metálicos, blocos de concreto e contêineres de navegação e contêm pátios internos, banheiros privativos e esgotos improvisados. As caixas de água e antenas parabólicas fazem lembrar as favelas do Rio de Janeiro ou os cortiços do Cairo.

"O que está acontecendo em Zaatari, embora cause muitos problemas, também apresenta oportunidades, porque o acampamento evoluiu em forma de um complexo ecossistema que poderia ser definido como uma cidade ou uma grande favela", diz Daniel Kerber, da Morethanshelters, agência assistencial alemã.

"De qualquer forma, é um lugar dinâmico, e de uma forma imprevista pelos agentes assistenciais que o dirigem, o que dá aos refugiados um senso de propriedade e dignidade".

Kleinschmidt diz que há 14 mil moradias, 10 mil repositórios de esgoto e vasos sanitários, 3.000 máquinas de lavar roupa, 150 jardins privados e 3.500 novas empresas, entre as quais uma loja de animais e uma floricultura. Os refugiados podem comprar frango frito de um restaurante instalado na rua principal, conhecida como Champs Élysée.

Tudo isso forma um mercado negro. Contrabandistas negociam com pagamento em produtos e vales do acampamento, o que solapa as empresas jordanianas legítimas e propicia lucros a quadrilhas de criminosos dentro e fora do acampamento. Uma delegacia policial provisória vazia perto de Zaatari desapareceu do dia para a noite, e os trailers que a formavam ressurgiram como casas e lojas dois dias mais tarde.

Em uma loja de produtos para noivas, o proprietário, Abdullah Harriri, disse recentemente que havia pago sete mil dinares jordanianos, ou cerca de US$ 10 mil, por sua propriedade em um local nobre da Champs Élysée -mais uma transação clandestina. "Pelo final do ano, devo poder vender a propriedade por 10 mil a 12 mil dinares", calcula. A presença de um mercado imobiliário paralelo é um sinal de permanência.

Os refugiados de Zaatari roubam a eletricidade que aciona suas lojas e máquinas de lavar, o que representa um fardo de US$ 750 mil ao mês para a ONU. Kleinschmidt está desenvolvendo um plano para cobrar pela eletricidade, e mais tarde pela água e esgotos, o que lentamente formalizaria a economia do acampamento.

A Jordânia recebe US$ 1 milhão ao dia em assistência internacional, e alguns proprietários de terras, bancos e pequenas empresas se beneficiam do influxo de sírios. Mas os jordanianos pobres, que pagam pelos serviços básicos de que desfrutam, queixam-se de que os sírios roubam empregos, causam alta de aluguéis e consomem recursos demais.

As queixas servem para explicar a concepção de Azraq, ao menos em parte -um acampamento que parece ter sido criado para impedir que os sírios escapem ou obtenham acesso ilegal a serviços de infraestrutura. Caso ele cresça como previsto, pode terminar sucumbindo diante das mesmas forças de urbanização que estão mudando Zaatari. Criar um sistema municipal de água lá custaria a mesma coisa que a ONU gasta a cada ano transportando água para o acampamento em caminhões.

A família Awad, todos os seus nove membros, estão entre os mais novos moradores de Zaatari. Os Awad têm seis filhos pequenos, doentes por conta das moscas e da disenteria, e vivem empilhados em uma barraca nos confins do acampamento. Gratos por escapar de um morticínio, eles lutam por sobreviver e sonham viver como Rasheed Abdul Latif Rashed e sua mulher Amal Zaubi, do lado oposto de Zaatari. O casal vendeu as joias de ouro da família e montou um complexo de trailers.

Em sua sala de estar, ao lado de um aquário borbulhante e de um pequeno altar que celebra seu filho único, morto na Síria, Abdul Latif diz que "estávamos acostumados a uma vida razoavelmente decente, em casa, e por isso tivemos de dar um jeito em nossa situação aqui".


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