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Opinião

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Michael Kepp

Devo deixar de assistir a Woody Allen?

Se esquadrinharmos a moralidade dos artistas, o que restará? Sou judeu, mas ouço Wagner, ainda que ele fosse antissemita virulento

O tribunal da opinião pública dos Estados Unidos, no geral, ignorou a mais interessante questão despertada pela reabertura do caso de suposto abuso sexual de Woody Allen contra a sua filha adotiva Dylan, quando ela tinha sete anos, em 1992.

Alimentado pela mídia, aquele tribunal parece mais fascinado pela questão de ele tê-la molestado mesmo, ainda que Allen jamais tenha sido formalmente acusado. O público preferiu colocá-lo em julgamento a fazer a pergunta mais interessante: se ele a molestou, será que eu deveria deixar de assistir aos seus filmes? Essa questão acarretaria um desafio moral e filosófico: é possível separar o artista de sua arte?

Todas essas questões ressurgiram duas semanas depois que Allen recebeu um Globo de Ouro especial pela sua obra (48 filmes), quando Dylan, 28, escreveu uma carta ao "New York Times" na qual pede a nós e a atores dos filmes dele que ouçam sua acusação antes de responder à pergunta: "Qual é seu filme de Woody Allen favorito?".

Com a pergunta intimidante, ela pretendia fazer com que as pessoas se sentissem culpadas ou ao menos pensassem antes de assistir aos filmes de alguém que ela alega tê-la molestado, antes de trabalhar neles ou antes de honrá-los.

A cantora Carly Simon reagiu à acusação afirmando que nunca mais assistiria a um filme de Woody Allen. Nicholas Kristof, colunista do "New York Times", questionou: "Será que o padrão para premiar alguém não deveria incluir honradez indisputável?".

Ou, para reformular a pergunta de Kristof, "não é impossível separar o artista de sua arte?". E minha resposta a isso é "não". Por quê? Porque se não erigirmos essa barreira ética, nos privaremos da capacidade da arte para iluminar as nossas vidas. Se esquadrinhássemos a moralidade de todos os artistas, que arte restaria para apreciarmos?

Eu sou judeu, mas ouço as óperas de Wagner, ainda que ele fosse um antissemita virulento, e adoro Sinatra, a despeito de suas conexões com a máfia. Admiro a pintura de Caravaggio, ainda que ele tenha assassinado um rival amoroso em uma tentativa de castrá-lo.

Por quê? Porque a música raramente é ideológica. E as pinturas de Caravaggio nada têm a ver com seu crime. Concordo com Oscar Wilde, segundo quem "todo retrato pintado com sentimento é um retrato do artista, e não do modelo".

Mas também acredito que quando acontece de o trabalho de um artista refletir seus preconceitos ou impropriedade moral, o que não ocorre nos exemplos citados anteriormente, é nossa obrigação moral atribuir-lhe um valor menor.

O exemplo clássico é o documentário "Triunfo da Vontade", de Leni Riefenstahl, que ao registrar um congresso nazista em 1934 usou técnicas cinematográficas inovadoras para glorificar Hitler. Sim, o filme é uma obra de arte, mas menor, porque também é propaganda nazista.

Os filmes de Allen não refletem seus preconceitos ou qualquer impropriedade moral. Eles apenas mostram suas neuroses. Personagens frágeis e comicamente ansiosas buscam a companhia umas das outras em um mundo confuso e de escolhas restritas. E as protagonistas cuja complexidade ele ilumina melhor são as mulheres. Meu mundo seria menor sem elas.


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