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Imunização ética
Quantas vidas mutiladas ou ceifadas pela poliomielite vale uma missão bem-sucedida para matar Osama bin Laden? Em sã consciência, a resposta seria: nenhuma. Mas esse tipo de consideração não costuma impedir agências contraterroristas dos EUA de perseguir seus objetivos estratégicos.
Não até agora, pelo menos. Em resposta a manifestação de dirigentes de escolas de saúde pública americanas, a Casa Branca anunciou no dia 16 que já em 2013 a CIA (Agência Central de Inteligência) renunciara a empregar campanhas de vacinação e seus agentes como cobertura para operações secretas.
O assassinato de Bin Laden, há três anos, em Abbottabad, só se tornou possível porque um médico paquistanês, Shakil Afridi, foi recrutado para obter informação sobre ocupantes do refúgio onde o terrorista morreu. Agentes de Afridi tiveram acesso ao prédio para aplicar vacinas contra hepatite B de um falso programa humanitário.
Afridi terminou preso por autoridades do Paquistão, e o jornal britânico "The Guardian" revelou seu envolvimento dois meses depois da ação. A farsa da imunização, associada a boatos de que os compostos ocidentais utilizados faziam parte de um complô para esterilizar crianças muçulmanas, desencadeou uma onda de desconfiança com as vacinas.
O efeito não pretendido, mas previsível, foi que muitos pais passaram a recusar a vacinação de seus filhos. Uma pesquisa da Unicef constatou que em algumas regiões do Paquistão, em 2012, até 67% dos progenitores tinham ouvido rumores negativos sobre a vacina oral antipólio -ainda que só 17,5% tenham acreditado neles.
Poucos países, no entanto, precisam mais de ação eficiente contra a poliomielite do que o Paquistão. Ao lado do Afeganistão e da Nigéria, é um dos raros locais onde a doença permanece endêmica, com 93 ocorrências em 2013; dos 82 casos registrados no mundo neste ano, 66 eclodiram ali.
O episódio Bin Laden, sozinho, não pode ser responsabilizado pela situação deplorável. Mas a desastrada instrumentalização de uma campanha humanitária para fins militares terá contribuído para dar vigor às convicções retrógradas e antiocidentais propagadas pelo Taleban -além de acarretar assassinatos de agentes de saúde.
A carta da Casa Branca não reconhece o grave deslize ético, limitando-se a declarar que o recurso não será mais usado. É um sintoma de que o governo dos EUA ainda se considera imune ao repúdio quase universal à noção de que os fins justificam os meios.