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Caminho secreto

Repórter faz expedição de 68 km para visitar conjunto arqueológico de Choquequirao, cidadela inca pouco conhecida de mais de 500 anos

CASSIANO ELEK MACHADO ENVIADO ESPECIAL AO PERU

As velhas aulas de geografia da professora Iara, com todas aquelas lições sobre mesetas, falésias, escarpas e maciços, se mostram insuficientes diante do cenário.

Dureza descrever essa cadeia rochosa: camadas e mais camadas de elevações, em todos os verdes e marrons, cortadas ao meio, lá embaixo, por um ruidoso rio esmeralda.

Serão quatro dias para tentar encontrar as palavras precisas. Pela frente, 68 quilômetros de caminhadas em zigue-zagues, como explica o guia Sergio, com um pequeno rabisco vermelho, em ondas, no mapa amarfanhado que ele estende sobre a mesa.

Estamos em San Pedro de Cachora (a 170 km de Cusco), ponto de partida. Em algum lugar lá em cima, depois de quase 20 quilômetros andando para baixo --e mais de uma dezena deles para o alto--, há a promessa de um conjunto de templos de pedras, objetivo da expedição.

Choquequirao (pronuncia-se txôquequiral) é o sonoro nome desse conjunto de ruínas incas, uma espécie de irmã menor de Machu Picchu.

Construídos mais ou menos na mesma época e com características semelhantes, os dois complexos arqueológicos nas reentrâncias andinas do Peru tomaram caminhos diferentes. E nós seguimos o rumo da menos famosa.

A expedição começa leve. Logo depois de deixar Cachora, tomamos um caminho de terra com uma inclinação suave. São três ou quatro horas de muita conversa.

Ainda há fôlego. Os guias Sergio e Christian vão falando sobre a adoração do milho e da quinua, a ideia de reciprocidade e, sobretudo, o conceito de que, para os andinos, o tempo é cíclico --disso eu me lembraria ao longo de toda a jornada.

Ao passo que protegem do Sol (a inclemente divindade dos incas), as nuvens nos dão um importante "recuerdo": não são elas que estão baixas, nós é que estamos no alto. Mas não por muito tempo.

No mirante de Capuliyoc, onde o passeio começa a se transformar em algo próximo ao alpinismo, a altitude é superior aos 2.800 metros. Dei um "alô" para a vendedora de refrigerantes dona Nemesia, uma das únicas interlocutoras que veríamos ao longo de quatro dias nas montanhas, e começamos a descida.

Iniciam-se assim horas de viagem vertical, até o quase inatingível pôr do sol, no acampamento de Chikiska, onde dormiríamos.

A noite termina cedo. Pouco depois das 4h, é preciso sair da barraca, tomar uma caneca de mate de coca e seguir caminho, ainda para baixo.

GAIOLA DOS LOUCOS

A antiga ponte sobre o Apurimac, rio que se alonga até o Amazonas, desabou há algum tempo e para cruzá-lo atualmente é preciso tomar uma "oroya", uma gaiolinha de ferro que desliza num cabo de aço sobre as águas.

Na outra margem do rio, no sopé do monte Salkantay (a "escassos" 1.500 metros de altitude), recomenda-se respirar bem fundo. Nas próximas sete horas, o visitante subirá, e, após um breve descanso num verdadeiro oásis, o pequenino bar de um senhor chamado Julian, dono do vira-lata Tarzan, sobe-se mais.

Por volta do km 28, quando já se escalou mais de mil metros de altitude, é difícil lembrar que, logo ao lado, existe paisagem. O rosto está sempre voltado ao chão, a memória evocando o verso de Drummond "tinha uma pedra no meio do caminho".

Uma placa afixada numa barraquinha de madeira caindo aos pedaços interrompe esse transe. "Santuário de Choquequirao - Último Bastião da Resistência dos Filhos do Sol e da Sabedoria Andina", diz ela. Ainda não chegamos, mas estamos quase lá.

Começa a cair a tarde quando atingimos um lugar chamado Marampata, que poderia muito bem significar em quéchua "o corpo em ruínas". É lá que o expedicionário estica seu esqueleto, para passar a segunda noite.

Na manhã seguinte, nem é preciso abrir muito da barraca para lembrar-se, enfim, de que o cenário ao redor é dos mais bonitos do mundo: sucessões de montanhas a perder de vista.

Mais um par de horas de caminhadas claudicantes, para o alto e avante, e aí está o primeiro paredão histórico. Choquequirao (ou Chuqui K'iraw, o berço dourado) é uma incógnita. E não só para mim. As funções deste grandioso complexo de pedras ainda não estão totalmente esclarecidas: entreposto comercial, centro religioso, fortaleza militar, ou todas as anteriores?

O fato é que a cidadela já foi bem relevante para os incas. Construída há mais de 500 anos, suas ruínas estão esparramadas por uma área de 80 hectares.

Muita gente devia circular por essas vielas, se reunir no amplo pátio central, cultivar alimentos nos 16 terraços, ainda visíveis, estocar comida nos armazéns estreitos e arejados. Naquela manhã fria de outono, porém, o antigo paraíso inca, embrulhado de névoas, estava vazio.

Só restava se abastecer de seus mistérios para encarar a longa jornada de volta.


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