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Crimeia, quando der

Itamaraty pede que brasileiros evitem ir à península, mas, antes de tensão, romancista viajou a fim de pesquisar material para seu novo livro e aprendeu por que os russos amam aquela região

DAVID BEZMOZGIS DO "GUARDIAN"

Desembarquei na Crimeia em agosto, na alta temporada, porque estava escrevendo um romance e havia decidido que a história se passaria lá. Precisava de uma cidade turística na costa soviética, dotada de um hotel luxuoso.

Isso aconteceu em 2011, quando a Crimeia ainda era parte de um país chamado Ucrânia, o qual, embora eivado de corrupção, ainda não mostrava sinais de revolução ou fratura violenta. Da perspectiva atual, seria lícito sentir alguma nostalgia por ele.

Antes de chegar, meu conhecimento da Crimeia se baseava principalmente nas histórias de meus pais e nos clássicos da literatura russa.

Quando pensava na Crimeia, eu pensava em Tchekhov, nos campos de batalha da Guerra da Crimeia, e nos playgrounds dourados dos czares e comissários do passado. Minha concepção sobre o que a região é hoje era nebulosa. Meus amigos russos não foram de grande ajuda. Um deles me disse, com desdém: "Não conheço pessoa alguma que vá para lá".

A classe média faz excursões ao Chipre e à República Dominicana, e os ricos tomam sol em seus iates em Cap Ferrat. A Crimeia hoje serve aos "narod", às massas, às pessoas da província que não são capazes ou de imaginar ou de bancar coisa melhor.

Quando minha família vivia na União Soviética, os cidadãos do país não tinham autorização para viajar ao exterior, e as escolhas de destinos de férias eram a costa do Báltico ou as cidades da costa do mar Negro, como Sochi, Gabra, Odessa e os balneários da península da Crimeia. Desses destinos, Yalta era possivelmente o mais desejável.

Mas a cidade que eu tinha em mente para o meu romance era Koktebel, que fica a quatro horas de carro ao sul de Yalta. Koktebel tem reputação boêmia e é conhecida como o lugar no qual o poeta e pintor russo Maximilian Voloshin tinha uma casa.

A estrada que leva à cidade passa por aldeias que lembram aquelas que encontramos em partes da Grécia ou do sul da Itália.

Quando cheguei ao hotel, percebi que não seria possível usar a cidade como cenário para meu romance. Koktebel não tem hotéis de luxo. Mas uma vantagem do hotel em que fiquei era sua localização a apenas algumas centenas de metros da casa de Voloshin, hoje um museu.

IDENTIDADE

A Crimeia, ainda mais que o restante da antiga União Soviética, não definiu ainda uma ideia coerente sobre si. Quando a cortina de ferro caiu, 20 anos atrás, todo mundo saiu cobiçosamente à caça das bugigangas de um mundo mais amplo.

O Club Santa Fe, logo a oeste da casa de Voloshi, serve sushi e pizza, e suas noitadas pulsam ao som de música techno. Barracas de comida anunciam "hot dogs" --mas os sanduíches consistem de pão sírio com salsicha.

Todas essas coisas são comuns, e podem ser encontradas em toda a antiga União Soviética. Mas outras coisas são exclusivas da Crimeia.

Há os cidadãos de Sebastopol, possivelmente os mais russos moradores locais. E há Yalta, onde Dmitri Gurov cortejou a dama do cachorrinho. Eles caminhavam pela esplanada à beira-mar da cidade, passeavam pelo píer. Agora uma nova geração de burgueses russos passeia por lá.

Mas o capitalismo ressurgido convive com o comunismo recalcitrante. Na praça Lênin, o mítico líder bolchevique continua em pé, imenso em bronze, contemplando um McDonald's.

Cultural e historicamente, Yalta tem seus atrativos. Sua principal atração é o palácio de Livadia, antiga residência de verão do czar Nicolau 2º.

Quando os bolcheviques tomaram o local, o saquearam inteiro, antes de transformá-lo primeiro em sanatório e depois em manicômio. Um museu que atrai muito menos visitantes que o palácio de Livadia --para sua sorte-- é o museu de Tchekhov. Pode-se visitá-lo e ver onde o autor dormia e escrevia.

Alguém cuja ideia de praia seja uma espaçosa faixa de areia macia e que tenha visto uma praia da Crimeia em agosto talvez fique a imaginar qual é a graça: corpos rubicundos, um bafafá, a proximidade dos barcos e o óleo que eles deixam escapar.

Mas esse é o atrativo da Crimeia. Não é um lugar pacífico ou repousante, mas tem seu charme. Trata-se de uma autêntica expressão de uma cultura cara aos russos.

E, em certo sentido, compreender o que está acontecendo na Ucrânia hoje significa compreender a atração peculiar da Crimeia. As pessoas que amam a região são exatamente aquelas que desconfiam do governo pró-europeu em Kiev e desejam em lugar disso ser parte da Rússia de Putin. Preferem o caos conhecido da Crimeia a alguma forma alienígena e ilusória de paraíso.


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