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Caminhando entre os guerrilheiros

Escritor, que viajou a pé ao longo do rio colombiano, teve noção do perigo verdadeiro ao travar contato com as Farc

MICHAEL JACOBS DO “OBSERVER”

O som distante de tiros perturbava a paz matinal de um vale ensolarado, tropicalmente brilhante. Uma jovem de cabelos longos bloqueava a trilha. Ela tinha uma metralhadora nas mãos. O acrônimo em sua lapela a identificava como integrante das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Ela nos instruiu a parar.

Eu estava acompanhado por Julio, um amigo de Bogotá, e por um guia local que nos havia conduzido em nossa expedição à fonte do maior dos rios colombianos, o Magdalena. Visitar sua fonte era a culminação de uma jornada que passei anos preparando. Mas foi no trecho final da viagem que comecei a ter noção do verdadeiro perigo.

Os três últimos dias haviam sido de medo constante. A viagem a cavalo por uma trilha florestal íngreme e escorregadia já seria assustadora o bastante, mas foi a descoberta, depois de chegarmos às montanhas, de que as Farc estavam na região que tornou a tensão quase insuportável.

Jenny, a guerrilheira que nos deteve, não foi capaz de nos informar o que acontecia. Tentamos puxar conversa com ela. Como no caso da maioria de seus companheiros, Jenny não parecia ter muito mais de 18 anos, mas revelou que era parte das Farc há mais de 13 anos. Ela provavelmente é um dos muitos membros do grupo que foram sequestrados de suas famílias quando crianças.

O subcomandante enfim chegou, pedindo desculpas pela demora e alegando que estava treinando tiro. Depois de uma troca de gentilezas, ele delineou os planos das Farc para a construção de um centro de recepção de visitantes, ampliar e melhorar a trilha que estávamos seguindo e para tornar a região mais atraente para os turistas.

Depois, perguntou se eu sabia um pouco de inglês. Quando admiti conhecer razoavelmente o idioma, pareceu deliciado. "Precisamos de alguém que traduza um pequeno texto para nós. Você poderia ajudar?"

"Claro", respondi, lisonjeado por ter sido confundido com um espanhol e quase feliz por poder ajudar. Era um manual de montagem de uma mira laser. Confessei que "meu inglês técnico não é grande coisa".

"Não se preocupe", o subcomandante me assegurou. "Mostraremos como uma arma funciona e o ajudaremos com os termos técnicos."

Fomos conduzidos a uma choupana com linda vista do vale, e o absurdo da situação em que nos colocáramos começou a substituir o medo. Julio propôs escrever minha tradução, enquanto Jenny me ensinava os termos técnicos corretos para as diversas partes da metralhadora. Logo percebi que não fazia ideia sobre o que o panfleto dizia.

Jenny achou que poderia ajudar se me mostrasse a mira. Impaciente demais para aguardar que eu decifrasse as instruções, ela tentou montar os diversos componentes de modo desajeitado.

DE PERTO

Por fim começamos a fazer progresso, apesar de visitas de amigas sorridentes de Jenny que queriam conversar conosco. Havia selva na Espanha? Que tipo de comida costumávamos comer?

Elas começaram a me dar uma receita de um doce feito com cana-de-açúcar e pênis de boi quando Marlon, namorado de Jenny, apareceu para dar um ar inquietante seriedade à situação. "Pessoalmente", disse, contemplando a mira, "prefiro matar pessoas de perto, de onde possa ver seus rostos. Mas a beleza dessa engenhoca é que ela permite tiro preciso a 150 m, e no escuro".

Depois disso, tudo que eu conseguia pensar era em deixar a área o mais cedo possível. "A lição de casa está pronta", disse Julio, depois que eu corri a traduzir as duas páginas finais do manual sem conferir o que ditava.

O subcomandante nos agradeceu muito, e pedi desculpas por possíveis erros. Ele disse que esperava nos ver de novo um dia. "Se vocês não se incomodarem em dormir em nossas humildes cabanas de folhas e galhos." Nós o agradecemos pelo tentador convite, e depois retomamos o caminho da montanha.

"Salvamos nossas consciências", Julio sussurrou assim que saímos da vista dos guerrilheiros, explicando que havia alterado ligeiramente minha tradução para tornar o texto, já confuso, completamente inútil.

Por sorte ele havia percebido o que eu desconsiderei por medo, e sua consciência o impediu de ajudar pessoas que causaram tamanho sofrimento e terror na Colômbia -traficantes de drogas, sequestradores de crianças. Pelos dias seguintes, fiquei remoendo essas implicações, até que, quando chegamos a Bogotá, notícias sobre a área do incidente me fizeram ver todo o acontecido sob outra luz.

Fomos informados pelo nosso guia de que o Exército havia ocupado a região e provavelmente matado os guerrilheiros com quem havíamos conversado. Não conseguia tirar da cabeça a imagem de Jenny tentando fazer a mira a laser funcionar e depois morrendo em defesa de uma causa tão confusa que chega a abarcar até mesmo a promoção do turismo.

Os meus sentimentos quanto ao que fiz de certo ou errado por traduzir algo para as Farc foram substituídos por algo diferente: uma imensa sensação de piedade.


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