'O Assassinato do Presidente' tece potente manifesto transexual

Crédito: Rodrigo Reis/Divulgação Leona Jhovs e Paulo Faria na peça "O Assassinato do Presidente", da Cia. Pessoal do Faroeste
Leona Jhovs e Paulo Faria na peça "O Assassinato do Presidente", da Cia. Pessoal do Faroeste

BRUNO MACHADO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O ASSASSINATO DO PRESIDENTE (muito bom) * * * *
QUANDO seg. a sex., às às 20h; até 26/1
ONDE Sede da Cia Pessoal do Faroeste, r. do Triunfo, 301,
tel. (11) 3362-8883
QUANTO contribuição voluntária
CLASSIFICAÇÃO 18 anos

Para além da crítica ao cenário político brasileiro atual, dois elementos conferem um brilho peculiar a "O Assassinato do Presidente", da Cia. Pessoal do Faroeste.

A primeira é o diálogo com o bairro paulistano da Luz, região que norteia o projeto artístico do grupo há quase duas décadas. A outra é a contribuição a um dos mais acalorados debates atuais, o da representação e da representatividade de travestis e transexuais nas artes cênicas.

Na primeira cena da montagem, o personagem Ulisses (referência à "Odisseia" de Homero), interpretado pelo também autor e diretor Paulo Faria, arma em punho, se apresenta ao público: figurão da Boca do Lixo, ele controla a prostituição e o tráfico, moedas de troca nas suas negociações com os gabinetes de Brasília.

Pode-se imaginar que Ulisses é o protagonista do espetáculo –papel que, na verdade, cabe a Penélope, personagem de Leona Jhovs, prostituta contratada para animar a noitada que antecede, como anuncia o nome da peça, o atentado que matará o presidente.

A dramaturgia empreende um esforço para desfazer a caricatura. Em nada Penélope lembra a paciente donzela da obra de Homero e tampouco a travesti estereotipada de tantas ficções contemporâneas.

Trata-se de um papel de grande potência realçado pela intensidade de Leona, que consegue, simultaneamente, elevar a personagem ao status de mulher fatal e vocalizar o drama comum de tantas transexuais: a despeito de sua qualificação profissional, não consegue arranjar trabalho e precisa se prostituir para sobreviver.

O discurso da personagem ganha força extra devido a um fato inescapável: Leona é também uma mulher transexual e ativa porta-voz da luta pela representatividade trans nas artes cênicas. Não sem ironia, sua Penélope é uma atriz que não consegue papéis na televisão, no teatro e no cinema.

ROCAMBOLESCO

Mas não basta ser oportuna, a dramaturgia também precisa ser bem encenada. Com elegância, a direção se esquiva do tom panfletário e dilui o conteúdo político em reviravoltas rocambolescas que ganham consistência graças ao competente trabalho da cenografia, da iluminação e da trilha, executada ao vivo.

Tais elementos colaboram para que, sob um olhar desatento, "O Assassinato do Presidente" seja apenas um suspense melodramático bem orquestrado, mas as diversas camadas do texto, bem exploradas pela encenação, provam o contrário.

Se eliminar o presidente representa a subversão da ordem e o decorrente reinado do caos, que Ulisses quer como legado, Penélope sabe que não será esse ato o responsável por dar fim ao machismo que, todos os dias, dizima mulheres, transexuais ou não. A personagem, então, assume sua vocação para a liderança revolucionária.

Num tempo em que transexuais lutam para fazerem-se ouvidos e visíveis nas mais diversas esferas da sociedade, "O Assassinato do Presidente" torna-se um manifesto, e a Penélope de Leona Jhvos é, provavelmente, uma das primeiras heroínas travestis do teatro brasileiro.

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