Descrição de chapéu

Cinema da diretora argentina Lucrecia Martel mostra ocultando

IMS Paulista faz retrospectiva dedicada à cineasta

Inácio Araujo
São Paulo

Nos filmes de Lucrecia Martel a vida parece um disfarce da vida. Ela passa ao lado de seus personagens, fingindo ser vida, mas é como se sempre lhes escapasse.

Não é por acaso esse tipo de angústia que aflige dom Diego de Zama, o herói desse notável "Zama", estreia de quinta (29) e que está na retrospectiva do IMS Paulista, dedicada à diretora. Desde a primeira imagem, esse homem que olha melancólico o mar (ou rio?) à sua frente sente a vida lhe escapar.

Cena do filme ‘A Menina Santa’, de Lucrecia Martel - Divulgação

Não é também o que ocorre a Verónica, "A Mulher sem Cabeça"? Enquanto guia, numa estrada, ela escuta um ruído seco, indicando que algo atingiu seu carro. Ela se convence de que atropelou alguém. Poderia ser um cachorro, mas poderia ser uma pessoa.

Ela acredita que foi uma pessoa e passará o filme em torno dessa crença, embora todos lhe digam que não. Isso assombrará sua vida. Seu olhar vago, atarantado todo o tempo, nos assusta mais do que comove. Verónica não é mais que uma ausência (já era no momento do acidente, diga-se), e no entanto o filme se passa em boa parte no seu rosto: esta é sua paisagem.

Zama não é tão diferente. Esse funcionário espanhol, perdido em uma aldeia colonial obscura na América Latina, cercado por um arremedo de corte, só pensa em sua transferência para Buenos Aires. Ela não chega nunca.

Zama vive numa espécie de quebra-cabeça de peças que não encaixam. O mundo colonial estilhaçado não deixa de lembrar essa outra paisagem, o rosto de Verónica. Ele parece estar lá para impedir o espectador de ver com de clareza o que está ao seu redor.

Isso já é o que acontece em seus filmes anteriores. Logo no início de "O Pântano", as pessoas bebem em torno da piscina, em um dia de sol. Não demora e uma das convivas se esborracha no chão junto com o copo de bebida. Algo de insuportável se insinua.

Tudo que vem a seguir dá conta da dificuldade de viver, de um quase não viver: da sujeira na piscina à caçada, da mulher alcoólatra à convivência das meninas. E ainda, sobretudo, ao menino que prende a respiração, como uma forma de simular, ou até de testar a própria morte: a ausência completa, a não respiração. Um painel, mas um painel despedaçado, opaco.

O essencial, no entanto, já é, aqui, a maneira de filmar: Martel se aproxima dos personagens de modo a barrar a visão de conjunto das coisas. Há um quarto, mas não conseguimos vê-lo por inteiro. Há uma piscina, mas tão cheia de detritos que mal enxergamos a água. Martel esconde mais do que mostra. Ou antes: mostra ocultando.

Tudo isso se passa, bem entendido, longe de Buenos Aires, no norte da Argentina, na região de Salta, onde nasceu Lucrecia Martel e de onde sai o mais original cinema de um país que entrou neste século se destacando pela força de seus realizadores.

"A Menina Santa" parece se abrir mais ao mundo. A cidade recebe um congresso médico. A dona do hotel se assanha para os lados de um simpático doutor. Este homem respeitável está, infelizmente, mais interessado nas adolescentes, entre as quais a filha da hoteleira.

A cena que talvez resuma o filme seja aquela em que um músico produz sons em seu instrumento sem tocá-lo: à distância. Ao mesmo tempo em que contempla (ou finge contemplar) o espetáculo, o médico aproxima seu corpo do da menina de maneira mais do que ostensiva.

Se o mistério, aqui, vem da menina, é a expressão do médico que carrega as tensões do filme: rosto fechado, dividido entre a ciência e a perversão, entre o que controla e o que nele é incontrolável.

Esse rosto tão presente corresponde bem à ausência da mulher sem cabeça. São imagens que velam em vez de relevar, ou antes: revelam ao velar. É ali que encontram sua eficácia.


MARTEL TOTAL

Veja sessões da retrospectiva

Sáb., 24/3

'A Mulher sem Cabeça' -  16h30

'O Pântano' - 18h30

Dom., 25/3

'O Pântano' - 17h45

sessão comentada por Lucrecia Martel

'A Menina Santa' - 20h

Ter., 27/3

'A Menina Santa' - 21h

Qua., 28/3

'A Mulher sem Cabeça' - 21h

Qui., 29/3, e sáb., 31/3

'Zama' - 21h

SEX., 30/3, e dom., 1º/4

'Zama' - 20h15

Cineteatro do IMS

Av. Paulista, 2.424

tel. (11) 2842-9120

Ingressos

R$ 8; R$ 20 no caso de 'Zama', que na qui. (29) chega ao circuito comercial

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