'Elza Soares tinha tudo para dar errado', diz Zeca Camargo, que a biografou

'Pelo amor de Deus, não me coloque como uma santa', pediu cantora ao escritor

Thiago Ney
São Paulo

Aos cinco anos, Elza Soares mal havia acordado quando teve uma visão. Ao lado de um “caboclo fechado, que não estava a fim de papo”, surgiu São Jorge, montado em um cavalo. A menina então falou: “São Jorge, posso pedir pro senhor dizer para meu pai não me bater tanto assim?”. Mas o santo respondeu que ela ainda apanharia muito —e Elza, muitos anos depois, relembra: “Mal sabia eu que ele queria dizer que eu iria apanhar mais da vida do que do meu pai”.

Esta é apenas uma das incontáveis histórias que estão em “Elza”, biografia escrita por Zeca Camargo, colunista da Folha, e que chega às livrarias nesta segunda-feira (12). Um livro que na verdade nem deveria existir —porque Elza Soares tinha tudo para dar errado.

A cantora Elza Soares - Karime Xavier/Folhapress

“Isso é muito claro para mim: não era para a Elza Soares ter dado certo. Teve uma origem miserável, casou-se aos 13 anos, foi mãe de cinco filhos ainda adolescente e, aos 19, já tinha perdido dois deles; começa a cantar escondida da família, sofre racismo sem nem saber o que era racismo”, afirma Camargo.

“E depois ainda se casa com o Garrincha e vira a inimiga pública número um do país. Ela já tinha haters nos anos 1960.”

​E isso é apenas o resumo do resumo do resumo. Dificilmente encontraremos na música brasileira alguém com uma trajetória tão constantemente castigada quanto a de Elza Gomes da Conceição, que até hoje não sabe direito a idade que tem. “Ela tem entre 85 e 88 anos”, diz Camargo. “É confuso, não tinha certidão. Ela foi emancipada para casar. Se considerarmos a emancipação, a idade é 88 anos.”

Uma vida bastante sofrida, mas Elza avisa: “Eu pedi ao Zeca: ‘Pelo amor de Deus, não me coloque como uma santa!’. Sou um ser humano, com pecados, desejos, não sou uma santinha, sou uma pessoa que enxerga a vida de um jeito bom”, diz à Folha.

Elza nunca foi uma santinha, tanto que, quando menina, mentia para a mãe e para o pai quando aparecia em casa com dinheiro (ou porque inventava alguma lorota para um desconhecido ou porque achava um saco de grana em uma igreja do bairro).

Mas Elza sofreu. Foi obrigada a casar logo cedo, por volta dos 13 anos, porque o pai a viu lutando contra um menino que a tentava assediar e ele pensou que estavam fazendo sexo. Seu Avelino, o pai, exigiu a união oficial.

Para ajudar a sustentar a casa e os filhos, Elza foi trabalhar em uma fábrica de sabão. Ainda adolescente, teve os filhos Carlos, Raimundo, Gerson, Dilma e Gilson. E ainda adolescente, perdeu Raimundo e outro filho logo depois do parto.

Em 1953, foi ao programa “Calouros em Desfile”, de Ary Barroso, na rádio Tupi, para ver se conseguia algo como cantora. Interpretou “Lama”, de Paulo Marques e Ailce Chaves. Foi tão bem que um impressionado Barroso sentenciou: “Senhoras e senhores, nasce uma estrela”.

Elza saiu dali confiante, mas a sua vida não mudou muito. Durante a noite, passou a cantar com uma orquestra em bailes pelo Rio. Em alguns salões, era impedida de subir ao palco por ser negra. Elza não entendia bem aquilo. “Naquela época era bem diferente. A gente convivia com aquilo”, relembra a cantora.

“Mas hoje sei que nasci em um dos países mais racistas do mundo.”

Em 1958, depois de integrar o espetáculo “É Tudo Juju-frufru”, foi convidada a participar de uma turnê por Buenos Aires com diversos músicos. Acomodada em um hotel, Elza dormiu pela primeira vez em um colchão (em casa, deitava-se sobre esteiras feitas com sacos de farinha de trigo).

O que era para durar alguns dias demorou quase um ano: Elza levou um calote e, para não voltar ao Brasil sem nenhum dinheiro e derrotada, permaneceu na Argentina fazendo pequenos shows. Ali, ficou amiga de Astor Piazzolla. E foi ali também que recebeu a notícia de que o pai havia morrido.

Ao retornar ao Rio, Elza investiu na carreira de cantora. Ajudada por Moreira da Silva, gravou um compacto com duas faixas. Pouco depois, convidada por Sylvia Telles, foi à Odeon gravar um disco. Ela ainda não era famosa, mas ao chegar ao estúdio viu que muita gente estava no local para vê-la, gente como Lúcio Alves e um certo João Gilberto (mais tarde, Elza ganharia como fãs nomes como Louis Armstrong e Sammy Davis Jr., entre muitos outros).

Depois da morte do marido (que nunca amou), Elza envolveu-se com o baterista Milton Banana e, no início dos anos 1960, com Garrincha. Elza já era uma cantora conhecida.

Garrincha foi o maior amor da vida de Elza, mas a união dos dois foi malvista no país. Porque Garrincha ainda estava casado com a primeira mulher, com quem teve oito filhas. Elza foi pintada como uma destruidora de lar.

Depois de vários incidentes perturbadores (tentativa de sequestro; casa invadida a tiros), Elza, Garrincha e crianças foram morar na Itália. Ela tentava emplacar a carreira no exterior; ele, já um ex-jogador, bebia cada vez mais.

Meses depois, voltaram ao Brasil. Garrincha, sem dinheiro, morreria vítima de uma cirrose hepática. Elza passaria por momentos de baixa na carreira.

“Eu não queria cantar apenas samba, queria sair daquilo. Dizia: ‘Deixa eu cantar o que quiser’. Quando eu pude sair disso, foi muito bom”, afirma. “Ela se sentia longe da turma, não reconhecida (por outros artistas da MPB)”, diz Camargo. “Não sabe se era racismo, se era preconceito ou se olhavam para ela simplesmente como uma cantora de samba. Nos anos 1980, gravou rock, com Cazuza, fez show com os Titãs.”

Mas a libertação artística de Elza veio apenas em 2002, quando gravou “Do Cóccix até o Pescoço”, com direção de José Miguel Wisnik. Recentemente, lançou dois dos discos mais elogiados da carreira, “A Mulher do Fim do Mundo” (2015) e “Deus É Mulher” (2018).

“Não teria feito nada diferente. Nem teria como, foi muito difícil. O caminho que vem, a gente abraça. A gente quer o melhor, mas a gente abraça aquele que dá.”

Talvez Elza Soares e Mané Garrincha sejam um retrato do Brasil. Ele, um talento extraordinário encerrado precocemente por ingenuidade e vício em bebida. Ela, um talento extraordinário que, mesmo recebendo pedradas a vida inteira, teima em resistir.

 

Elza
Zeca Camargo. Ed. LeYa (R$ 54,90, 400 págs.). Lançamento dia 12, no Rio de Janeiro, às 19h30, no Estação Net Gávea; e dia 21, às 19h, em São Paulo, na Liv. Cultura do Conjunto Nacional

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