Descrição de chapéu

Palatnik mergulhou em luz e formas para criar máquinas de êxtase

Artista se diferencia dos maiores nomes da arte cinética ao construir obras reais e concretas, nunca uma ilusão

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Os vultos desaparecem na luz, uns roliços e dóceis, outros afiados como punhais, espetando as estrelas entre alvoradas e crepúsculos. Eles brilham e recuam à escuridão num respiro mecânico —são cores arfantes, do vermelho-sangue ao mais trevoso azul, algum lugar entre brisa e tempestade.

Dentro da primeira caixa cheia de recortes de madeira e luzes em movimento que Abraham Palatnik, morto neste sábado, chamou de “Aparelho Cinecromático” estavam quase um quilômetro de fios elétricos e uma centena de lâmpadas de diferentes cores e voltagens, as entranhas rasteiras do que na superfície se revelava uma pintura abstrata em transe, de um fulgor inimaginável para qualquer peça de museu.

Quando seu invento movido a engrenagens e eletricidade, uma espécie de pintura-filme, foi montado na primeira Bienal de São Paulo, em 1951, o mundo ainda esperava cicatrizar as feridas da Segunda Guerra e a crítica de arte digeria os espasmos do expressionismo abstrato.

Nesse caldo, os móbiles do americano Alexander Calder despontavam como alguns dos primeiros objetos mais leves num cenário arrasado, o sinal de que a arte do futuro deveria se desfazer das amarras castradoras de qualquer superfície.

Palatnik, alçado então com justiça ao posto de pioneiro da chamada arte cinética, ancorada na ideia de luz e movimento, plasmou nas suas obras essa nova ideia de liberdade plástica na esteira de Calder, mas com o rigor dos engenheiros, em especial aqueles treinados a quente, no calor da guerra.

Muito antes de se tornar um dos artistas mais celebrados da segunda metade do século passado, Palatnik estudou mecânica. Era expert em montar carburadores de caminhões e, depois, de tanques blindados.

O jovem Palatnik, filho de judeus nascido em Natal, se mudou na infância para Tel Aviv, então um território britânico, para estudar engenharia. Foi quando estourou a Segunda Guerra Mundial, e ele foi recrutado, como os outros rapazes da turma, para as linhas de montagem do poder militar dos aliados. Em paralelo, ensaiava suas primeiras pinceladas em telas figurativas, paisagens e naturezas-mortas.

Seus últimos retoques num autorretrato coincidiram com o cessar-fogo. Mas o artista, de volta ao Brasil, desta vez no Rio de Janeiro, logo deixaria de se reconhecer naquele espelho pintado a óleo e no tipo de arte que aquilo representava.

Palatnik estreitou laços com o crítico Mário Pedrosa, um dos pilares do pensamento estético do país, e com Almir Mavignier, um dos grandes artistas a despontar nos primórdios do concretismo.

Enquanto Pedrosa, de regresso de uma temporada em Nova York onde escreveu seus primeiros ensaios sobre a obra de Alexander Calder, via em Palatnik a novíssima figura do artista-engenheiro, capaz de levar a cabo uma espécie de revolução que injetaria nas máquinas um grau de imprecisão e espontaneidade, Mavignier abriu as portas de outro mundo ao então jovem artista.

Foi com o concretista que Palatnik viu pela primeira vez os desenhos dos internos do hospital psiquiátrico do bairro de Engenho de Dentro, então capitaneado pela médica Nise da Silveira, uma experiência que mudou para sempre os rumos de seu trabalho.

“Eram surpreendentes as imagens, vinham das profundezas do inconsciente deles”, disse Palatnik, numa entrevista, sobre a obra dos esquizofrênicos. “Então achava que meu caminho estava errado, decidi abandonar a pintura. Tudo o que eu imaginava que era arte desmoronou.”

O que veio depois do colapso, de fato, foi um mergulho na luz e nas formas da geometria mais límpida que se moviam de acordo com as finas engrenagens que ele fazia a mão, como joias. Nesse sentido, Palatnik foi um construtor de máquinas de arrebatamento, peças que atiçam o olhar.

Mas, ao contrário do resto da escola cinética, que na década de 1960 ganharia corpo em Paris arrebanhados pela marchande Denise René, com astros mortos nos últimos anos, entre eles François Morellet e Carlos Cruz-Diez, Palatnik não buscava uma ilusão.

O movimento de suas peças, a não ser nas séries mais recentes, estáticas, era real e construído com precisão matemática —suas engrenagens, a meio caminho entre o subconsciente fantástico e a necessidade de retratar algo concreto, eram a ferramenta que o deixava fundir universos irreconciliáveis, a abstração e a figuração, a pintura e a escultura, que se encontravam num novo terreno, resplandecente.

Talvez porque bastava olhar pela janela para ver um mundo de beleza tão sublime quanto palpável. A vista de seu apartamento para a enseada de Botafogo, o Pão de Açúcar como um gigante deitado, escudo dos barquinhos balançando na brisa, não surge retratada nas obras, mas todas elas ostentam um movimento e uma luminosidade que não poderiam sair de outro lugar.

Distante dos grandes centros, Palatnik talvez não tenha nos livros de história o peso gigante que merece como propulsor de um pensamento calcado no movimento que, ao contrário dos maiores nomes dessa corrente, não se restringe ao impacto etéreo, ludibriante de luzes, sombras e reflexos a reverberar no espaço.

Toda a beleza de seus “Aparelhos Cinecromáticos”, das constelações rodopiantes que montou com os planetas e astros de seus “Objetos Cinéticos” e mais tarde a vibração calculada de suas obras construídas com recortes de papelão está alicerçada num trabalho de pulso firme, físico, mecânico como os motores.

Seu trabalho, a começar pelas caixas de luzes em movimento, ganhou o mundo —sua participação na Bienal de Veneza, em 1964, coincidindo com a explosão da vanguarda cinética na Europa. Também muito antes do que se passaria a chamar de estética relacional, seus “Campos Magnéticos”, máquinas construídas com ímãs que convocavam a participação do público, já antecipavam uma era em que arte deixava de ser só um objeto de contemplação passiva.

O poder de atração de sua obra em grande parte tem a ver com o fato de ela ser real e concreta, nunca uma ilusão.

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