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Warsan Shire, alavancada por Beyoncé, supera os seus traumas em poemas

Estreia de escritora de origem somali revisita questões da infância e da adolescência para deixar tudo no passado

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Stephanie Borges

Poeta, tradutora e jornalista, é autora de “Talvez Precisemos de um Nome para Isso”. Apresenta o podcast Benzina.

Bendita Seja a Filha Criada por uma Voz em Sua Cabeça

  • Preço R$ 59,90 (148 págs); R$ 39,90 (ebook)
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Laura Assis

O deslocamento forçado por causa da guerra, os desafios de viver em meio a ensinamentos somalis numa cultura europeia e a relação mãe e filha são elementos marcantes no primeiro livro de poemas de Warsan Shire.

"Bendita Seja a Filha Criada por uma Voz em Sua Cabeça" se volta para diferentes origens –a família muçulmana, o sentimento de inadequação e as influências da cultura pop– para mapear os vários desafios de crescer e enfim encontrar o próprio caminho.

Valorizar a própria trajetória pode ser um dos motivos pelos quais Shire só publicou seu primeiro livro agora, anos depois de se tornar conhecida por sua colaboração com Beyoncé em "Lemonade", de 2016.

Em vez de aproveitar o sucesso no álbum visual para alavancar sua estreia em livro, a poeta continuou trabalhando até chegar a um volume de poemas que equilibram temas dolorosos e imagens fortes.

A escritora, poeta, editora e professora somali Warsan Shire
A escritora, poeta, editora e professora somali Warsan Shire - Yves Salmon/No Flickr

Se o tempo fez com que a expectativa pela coletânea aumentasse, a espera valeu a pena. Os leitores estão diante de poemas que pedem uma leitura atenta, pois se inicialmente o trauma é evidente, há bem mais do que isso nos versos de Shire.

Vários poemas tratam da experiência de ser uma menina em condições adversas. A infância é um momento em que a própria fragilidade é óbvia e assustadora. A falta da sensação de pertencimento confere à poeta um olhar crítico.

Há pessoas cruéis à sua volta. Palavras maldosas impactam a percepção que ela tem de si mesma. A poeta reúne referências como suras do Alcorão, ditados somalis, histórias de seus familiares, séries de TV e filmes. É com esses ingredientes que a autora cria uma voz em sua cabeça que a possa guiar entre os perigos.

Embora os poemas tratem de violências físicas e psicológicas, a poeta usa imagens com muita habilidade. Assim, cenas banais como as filhas observando a mãe se maquiar, ou uma jovem ligando para sua família em outro país, evocam desalento e ternura ao mesmo tempo. As descrições de paisagens da Somália, imagens de adolescentes se divertindo e diálogos com os mortos compõem poemas que falam de dores sem traços de autopiedade.

No poema "Em Reverso", a autora recorre à metalinguagem —"o poema pode começar rebobinando-o até o quarto./ Ele tira o casaco e fica sentado ali para sempre,/ é assim que a gente traz o pai de volta"— para tratar da ausência paterna e da situação de duas meninas e uma mãe vivendo com um padrasto violento.

A narrativa é construída como um videoclipe de trás para a frente, a partir do desejo de restaurar harmonia familiar e as inocências perdidas. Em "Bendita Seja a Verdadeira Mulher do Lar", a filha questiona a mãe sobre os riscos de permanecer numa relação violenta, mas os versos evocam uma mulher que ainda sonha com a liberdade, em vez de a julgar apenas como uma vítima.

Na travessia da infância à vida adulta, uma dificuldade é a falta de mulheres negras que sirvam de exemplo a seguir. De um lado está a assimilação pela cultura britânica, com seus padrões de beleza eurocêntricos, do outro, uma vida regida por interpretações do Alcorão que tratam as mulheres como seres pecaminosos que precisam ser submissas e afastadas do pecado. Ao rejeitar as duas opções é preciso correr riscos, reconhecer os próprios desejos, ter o coração partido, perder pessoas e vivenciar o luto.

Se os versos finais do primeiro poema celebram a sobrevivência —"Mãe/ eu consegui/ sair da sua casa/ viva, criada pelas vozes/ na minha cabeça"— o último poema, "A Manicure como Quiromante", profetiza que a poeta se tornará mãe de duas meninas. Num sonho, um bebê emerge do ventre e o outro brota como uma flor. Não é um final feliz, mas um ciclo se rompe. Novas relações se tornam possíveis.

Bendita seja a poeta capaz de criar no presente uma obra da qual precisou em sua juventude e consegue fazer isso indo além da narrativa do sofrimento.

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