Hamlet tem síndrome de Down em peça que chega a festival de Portugal

Diretora Chela de Ferrari diz que encontrou o ator ideal que sempre buscou ao conhecer Jaime, que é neurodivergente

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Inês Nadais

Durante mais de três anos, Jaime Cruz circulou pelos corredores do Teatro La Plaza como apenas um entre os muitos assistentes de sala, conduzindo espectadores aos seus lugares e vendendo-lhes os programas dos espetáculos em cena na instituição, fundada em 2003 no privilegiado bairro de Miraflores, em Lima, a capital do Peru. Até o dia –e Chela de Ferrari nunca mais se esqueceu desse dia– em que, convidado a apresentar-se em público num evento interno, pronunciou muito convictamente as palavras "sou ator" quando chegou a sua vez de dizer ao que vinha.

Hamlet, encenado pelo Teatro La Plaza
'Hamlet', encenado pelo Teatro La Plaza - Divulgação

Nasceu nesse preciso momento o inesquecível assalto ao mais seminal dos seminais textos de Shakespeare que esta sexta-feira chega ao Teatro Nacional São João, no Porto, em Portugal, integrado no programa do Fitei (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica). Um Hamlet que, embora não dispense a caveira e a pose, fatal, à Laurence Olivier, não é –não quer ser– "como os demais". E que após uma fulgurante carreira doméstica de 64 representações, interrompida pela pandemia, continua a circular desde 2019, agora à escala internacional –os seus oito atores, um grupo de pessoas neurodivergentes (na sua maioria com síndrome de Down), subindo ao palco noite após noite "como se fosse a primeira vez".

"Não sei como explicar isto…", diz ao Ípsilon Chela de Ferrari, encenadora do espetáculo e diretora artística do Teatro La Plaza. "Já fizemos a peça centenas de vezes, mas parece que todas as noites são noites de estreia. Eles têm a capacidade da repetição, e ao mesmo tempo frescura na repetição. Ignoro se é próprio da condição destes atores, mas é do mais belo que podemos aprender com eles. Estão sempre novos no palco. Vêm sempre com a mesma ânsia de comunicar cada palavra."

Montagem espetáculo de 'Hamlet', apresentado pela companhia Teatro de La Plaza,dirigida pela diretora Chela De Ferrari e estrelada por atores com síndrome de Down - Divulgação

Não é difícil ligar os pontos entre essa ânsia que agora sobressalta plateias do Chile a Portugal e a urgência, algures entre o desejo e o desespero de se fazer ouvir, que Chela de Ferrari pressentiu naquele manifesto exploratório de Jaime Cruz –um dos oito Hamlets desta peça, juntamente com Octavio Bernaza, Lucas Demarchi, Manuel García, Diana Gutierrez, Cristina León Barandiarán, Ximena Rodríguez e Álvaro Toledo. Como que ecoando o irresolúvel dilema existência do texto original, o lapidar "ser ou não ser" que assombra leitores e espectadores desde o século XVII, esse "sou ator" rapidamente se converteu num disparador para uma encenadora que há muito queria montar este texto de Shakespeare e "ano após ano" dava por si a adiar o projeto por não encontrar "o ator adequado".

"Quando vi o Jaime a apresentar-se não como assistente de sala mas como ator, convidei-o para tomar um café –um longo café em que descobri muitas coisas, incluindo os meus próprios preconceitos, e que despertou uma enorme vontade de continuar a conhecer esta pessoa com quem até então só me tinha cruzado de passagem, de estabelecermos uma relação", conta Chela de Ferrari ao telefone a partir de Londres, a poucas horas da sua partida para o Porto. Esse primeiro encontro com o primeiro dos seus oito Hamlets, acredita, "é um espelho do que acontece ao público": "A experiência de assistir a este espetáculo é, por um lado, a de vermos posta a nu a nossa total ignorância e, ao mesmo tempo, a de vermos despertar, de raiz, um profundo desejo de intercâmbio."

Fracassos e superações

Construída ao longo de um ano no vaivém entre o trabalho na sala de ensaios e "as reflexões, reivindicações e aspirações" dos oito atores, esta "versão livre" do texto de Shakespeare começa com o vídeo hiper-realista de um parto aparentemente igual aos outros. Octavio, Lucas, Manuel, Diana, Cristina, Ximena e Álvaro também terão nascido assim, só que a vida complicou-se depois, até esta idade adulta em que, por serem "especiais", continuam dependentes da autorização dos pais para se apaixonarem, perderem a virgindade, talvez um dia terem (oito) filhos –também com síndrome de Down, também vítimas de bullying na escola (mas com abraços à espera em casa).

Tal como Hamlet, reivindicam o direito à autodeterminação –como cidadãos e como atores. Por isso pedem aos espectadores que mantenham a calma se demorarem mais do que "o normal" a dizer o texto, se gaguejarem, se não pronunciarem bem as palavras, se lhes der um branco (de resto, os atípicos critérios de um casting que quis encontrar "beleza e valor naquilo que geralmente repudiamos como defeitos de representação"). Por isso se comparam, coroa majestática, pose reclinada, ao enorme Laurence Olivier. E por isso fazem uma chamada Skype a outro Hamlet famoso, Ian McKellen, para saber se, como eles, teve vontade de chorar na estreia –ou de ir ao banheiro no meio da representação. Também é Jaime que conta que o seu maior fracasso na vida foi não ter sido aceito num workshop de representação de uma produtora de televisão. Mas, e a pergunta sai disparada e brutal, o fracasso é dele ou é da produtora?

Sem prescindir de se abeirar dos abismos existenciais que fazem deste texto uma obra-prima, a encenação de Chela de Ferrari apoia-se neles para sondar outros abismos existenciais, aqueles que separam uma plateia tendencialmente neurotípica deste palco excepcionalmente neurodiverso, entrançando-os com os destinos de Hamlet, Ofélia, Polónio, Cláudio, Horácio ou Gertrudes. "Foi logo no primeiro encontro com o Jaime que me passou pela cabeça que ele podia ser o príncipe de que eu andava a procura –um príncipe que podia ressignificar a obra, pô-la a dizer outras coisas", explica.

Mesmo uma pergunta tão gasta como "ser ou não ser" soa como nova ao longo desta hora e meia de confronto e encantamento. E a inquebrável relação de tutela a que estão condenados os portadores de trissomia 21, ou de déficits cognitivos como o de Cristina, a narradora, foi outro dos "cruzamentos" que a encenadora imaginou imediatamente "como possíveis", após algum tempo de contato e de convívio com os intérpretes e as suas redes de familiares e amigos. "Os pais vigiam-nos permanentemente, até os amores são supervisionados. Mas eles surpreendem-nos. Por exemplo: contra todos os prognósticos de todos os especialistas que consultamos, e que nos disseram que eles não suportariam ensaios de mais do que uma hora e meia, ao segundo mês já estávamos a ensaiar quatro horas e na recta final antes da estreia os tempos de trabalho chegaram às oito. Esse foi só um dos mitos que caíram. Outro era que nunca conseguiriam aguentar-se sozinhos em palco."

Com o apoio de Jonathan Oliveros, que inoculou nesta produção a sua experiência como diretor de uma escola de teatro amador para pessoas com deficiências, os ensaios tornaram-se "um espaço de intimidade, alheio aos pais", onde cada um pôde manifestar-se livremente e redescobrir-se no seu genuíno e finalmente validado interesse pelo teatro, ou por esta ou aquela personagem (Octavio declarou desde logo que lhe interessavam mais os vilões, Diana que queria ser Gertrudes). "Saber que aquilo que estávamos a fazer ia conduzir a um espetáculo profissional no La Plaza era algo que os emocionava muito, porque a invisibilidade é a condição habitual de um ator portador de síndrome de Down", comenta Chela de Ferrari.

Ao fim destes cinco anos, talvez transformação seja a palavra que melhor resume o que lhes aconteceu –a todos. "No início do processo eu não percebia totalmente quando lhes perguntava por que queriam fazer teatro e me respondiam ‘porque quero ser famoso’ ou ‘porque quero que olhem para mim’. Agora percebo que me estavam a dizer que querem ser, que querem estar presentes. Eu mudei, eles mudaram. Hoje entendem o teatro como um processo muito mais coletivo do que individual: o processo de se converterem noutras pessoas, com outras pessoas. Mesmo que isso possa ser profundamente perturbador. E houve situações perturbadoras. Um dia, ao fim de oito meses de trabalho, a Ximena chegou a chorar porque já não sabia quem era, se nuns momentos se sentia como uma pessoa com síndrome de Down e noutros não."

Entre outras luzes que se acenderam fruto de um corajoso trabalho de introspecção, Ximena é uma delas: há mais de três anos que com Octavio forma um casal. Outros evoluíram muito na fala, como os próprios pais relatam, ou na capacidade de auto-análise e de autocrítica. E também "o público entra céptico e preconceituoso" e sai, alguma Shakira e muitas tiradas fatais depois (paternalismo é que não há nenhum), pelo menos um pouco transfigurado. Ou então isto não seria teatro. "É impressionante a mudança que podemos ver acontecer num tão curto lapso temporal."

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