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Caso real de homem que vendeu todos os bens após traição inspira HQ inventiva

'Damasco', de Alexandre S. Lourenço e Lielson Zeni, mescla a jornada de são Paulo e budismo em saga pop contemporânea

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São Paulo

As primeiras palavras de "Damasco" soam como um pedido ao leitor —"Inspira, expira, respira". É quase um alerta, um último aviso antes da montanha-russa visual que está por vir. A trama do quadrinho é simples, seus personagens são jovens e sem muitas ambições, mas os desenhos e os designs de páginas da história em quadrinhos podem deixar um ou outro leitor sem fôlego.

O roteirista, editor e pesquisador Lielson Zeni teve a ideia que resultaria em "Damasco" ao ler sobre a história real de um cidadão inglês que botou todos seus pertences em leilão na internet após flagrar a mulher em uma banheira de hidromassagem na companhia de outro homem.

Trecho da HQ 'Damasco', de Lielson Zeni e Alexandre S. Lourenço
Trecho da HQ 'Damasco', de Lielson Zeni e Alexandre S. Lourenço - Divulgação

A decisão do britânico Ian Usher de recomeçar a vida do zero teve repercussão mundial. Com os € 243 mil acumulados nas vendas de seus bens, ele saiu viajando pelo mundo —e hoje vive como palestrante motivacional.

Parceria de Zeni com o ilustrador Alexandre S. Lourenço, "Damasco" parte do mesmo princípio, mas toma outros rumos. O protagonista é Saulo, um homem que se cansa da própria vida e de sua rotina burocrática, coloca seus bens à venda e termina com a namorada com o propósito de desaparecer.

"Adoro quando a realidade tira um sarro da ficção. Tipo isso: um cara acha que a vida dele está ruim e resolve repassar para outra pessoa tudo que tem e recomeçar", diz Zeni sobre o ponto de partida bem-humorado da HQ.

Depois, o álbum ganha contornos mais complexos, com Zeni criando pontes entre seus interesses pela noção budista de iluminação e a jornada bíblica de Saulo —que depois seria são Paulo— até a capital síria de Damasco e sua conversão ao cristianismo em uma interação com Jesus Cristo.

A trama existencialista ganhou ares modernos com a arte ora minimalista, ora detalhada de Lourenço e várias referências pop e literárias contemporâneas.

Zeni tem no currículo outros títulos como roteirista de HQs, além de suas atuações como crítico e pesquisador de quadrinhos. Também é conhecido no meio por suas atuações como editor —ele trabalhou, por exemplo, na edição de "Silvestre", da editora Darkside, obra do quadrinista Wagner William vencedora do Prêmio Jabuti em 2020 na categoria histórias em quadrinhos.

Já Lourenço é autor da série virtual "Robô Esmaga", transformada em livro em 2015 pela editora JBC, e do clássico contemporâneo "Você É um Babaca, Bernardo", da editora Mino —obras marcadas pela delicadeza do traço e por suas diagramações ousadas.

O roteiro de Zeni foi escrito tendo em mente as mirabolâncias estéticas de Lourenço. "Esse livro foi feito com dois propósitos básicos: primeiro, teria de ser muito quadrinho, no sentido de usar a materialidade quadrinística e gráfica", explica o roteirista.

"Não queria uma história que servisse de 'storyboard' para um filme. O outro propósito é que foi pensado para ser feito pelo Alexandre S. Lourenço. O ideal é que Damasco não funcione com outro tipo de lógica quadrinística".

Trecho da HQ 'Damasco', de Lielson Zeni e Alexandre S. Lourenço
Trecho da HQ 'Damasco', de Lielson Zeni e Alexandre S. Lourenço - Divulgação

Os dois parceiros de projeto foram colegas no curso de letras da Universidade Federal do Paraná na primeira década dos anos 2000. Eles trocaram os primeiros emails sobre uma possível parceria em 2013. "Damasco" só foi impressa dez anos depois. Nesse intervalo, a dupla afinou seus interesses em torno das possibilidades da linguagem das HQs.

"Acho que estou me percebendo cada vez menos interessado em história", afirma Lourenço sobre sua relação com quadrinhos. "Isso tanto como leitor ou quadrinista. Gosto de quando um quadrinho sabe que é um quadrinho. Quando se apresenta como quadrinho. Quando faz o espaço na página funcionar como em nenhum outro lugar poderia funcionar".

"Damasco" beira um posicionamento em relação ao uso da linguagem das HQs. O leitor acompanha as idas e vindas da jornada de Saulo até alcançar seus objetivos sob a arte mutável de Lourenço.

O álbum começa com páginas de poucos painéis ao retratar a rotina rígida de Saulo, torna-se maleável nas sequências sobre sua vida romântica e passa por uma sequência com jeitão de videogame dos anos 1980.

O saldo final é uma saga de libertação e isolamento em uma metrópole moderna com demandas profissionais frenéticas que coloca em segundo plano qualquer pormenor pessoal. Tudo isso, com as investidas gráficas singulares de Lourenço.

O ilustrador enfatiza sua abordagem. "Não gosto quando o quadrinho funciona como um filme, como uma série, uma poesia. Parece que fica duro. Sem graça, oco. Procurando ser o que não é. Isso é o que eu procuro quando leio: o movimento estático em toda sua suntuosidade".

Damasco

  • Preço R$ 109,90 (208 págs.)
  • Autoria Alexandre S. Lourenço e Lielson Zeni
  • Editora Brasa
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