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Livros

Jeovanna Vieira faz um dos melhores livros de estreia dos últimos anos

Espiral de um relacionamento abusivo é retratada em 'Virgínia Mordida' com a segurança de uma autora experiente

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Camila von Holdefer

Tradutora e pesquisadora dos institutos de filosofia e neurociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

VIRGÍNIA MORDIDA

  • Preço R$ 79,90 (192 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Jeovanna Vieira
  • Editora Companhia das Letras

A personagem-título de "Virgínia Mordida" não é ingênua, inexperiente ou vulnerável. Advogada carioca bem-sucedida de 30 e tantos anos, ela mesma se define como "sagaz da vida". Ainda assim, acaba em um relacionamento abusivo.

mulher negra de vestido vermelho
Jeovanna Vieira estreia com 'Virgínia Mordida', publicado pela Companhia das Letras - Thais Alvarenga/Divulgação

Ela conhece Henrí numa festa, e os dois logo decidem morar juntos. Ele coleciona traumas de infância, é um pretenso ator desocupado e preenche o tempo livre promovendo rinhas de galo.

É um ponto de partida pouco promissor e, daí em diante, é ladeira abaixo: os comentários em tom de brincadeira não demoram a se tornar perturbadores, começam as tentativas de monitorar e controlar Virgínia, seguidas de escândalos e ofensas, e a chantagem emocional se instala.

Henrí parecia "pueril e raso quando conversava com adultos" e, em público, Virgínia vira a "tutora de um homem de 40 e tantos anos". Ela não quer ser associada aos comportamentos e opiniões constrangedores dele, mas também não quer ofendê-lo. Acuada, prefere se afastar dos amigos e da família.

Um relacionamento abusivo costuma provocar nos que estão de fora uma espécie de perplexidade. É o caso das pessoas próximas a Virgínia, peças fundamentais aqui: à medida que a protagonista perde a própria identidade em uma espiral de dor e confusão cada vez mais vertiginosa, elas estão lá para lembrá-la (e mostrar ao leitor) de onde ela veio e quem é.

A estreante Jeovanna Vieira faz isso sem jamais abandonar a narrativa em primeira pessoa de Virgínia, o que é um trunfo técnico: equilibrando a duplicidade com a segurança de uma autora experiente, Vieira faz com que Virgínia ouça sem ouvir as opiniões das amigas Penélope e Dóris e saiba sem saber o que a mãe e as tias pensam de Henrí.

O que Virgínia absorve é seletivo. O leitor, porém, entende o panorama mais completo.

Vieira quer mostrar, em primeiro lugar, que Virgínia é uma mulher rodeada de amor. A família tem na matriarca Benedita suas raízes sólidas, e seus membros encontram uns nos outros sua sustentação e seu vigor. "Nenhum galho de Benedita se permitiria passar por essas merdas" pelas quais Virgínia agora passa, "sob olhares incrédulos".

Henrí, com comentários e atitudes que desrespeitam a árvore de Benedita, é o homem branco insensível e invasivo, o "corpo inconveniente" que Virgínia leva para perto dos seus.

A questão racial é apenas um dos focos de tensão em um relacionamento em tudo problemático. Para entender a protagonista, é preciso entender que ela é uma mulher negra que aprendeu desde pequena, com uma família gregária e uma mãe militante, a se orgulhar de sua ancestralidade em um país racista.

É por isso que a metáfora dos cabelos é tão bonita, pois põe no centro da narrativa a cena de uma mãe que penteia a filha com delicadeza para que o processo não seja doloroso —porque não quer vê-la machucada.

Até mesmo a agilidade da narrativa tem um propósito, uma vez que tudo se sucede num vórtice que arrasta a própria protagonista —e é essa perda de controle, acompanhada de uma tentativa de se reorientar, que ela narra.

As descrições de Vieira não poupam o leitor do constrangimento e do horror das cenas provocadas por Henrí —uma delas dá origem ao título do livro—, nem do olhar de Virgínia, que mistura muito bem o autoengano com lampejos de lucidez.

"Levar aquele homem para casa é como recolher o cocô do cachorro na calçada. Muito mais um ato cívico para que as outras pessoas não se sujem do que vontade de ir com ele a qualquer lugar", diz ela.

Uma combinação de inércia e esperança mantém Virgínia presa àquele amor que, achava ela, "algum dia seria estável e seguro". O senso-comum garante que a racionalidade é algo apartado das emoções, e que, se quiser de verdade, você pode se guiar pela lógica pura. "Virgínia Mordida" mostra a falsidade dessa visão sem jamais precisar dizer isso aberta, didaticamente.

Há bons romances de estreia de autores de quem você não necessariamente quer ler o segundo. Não é o caso de Vieira, que sabe narrar e narra sem medo, que não facilita a vida do leitor e (graças a Deus) não escreve em prosa poética. Que o próximo venha logo. Não é exagero dizer que é uma das melhores estreias dos últimos anos.

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