Descrição de chapéu Artes Cênicas

Borges inspira peça sobre as angústias modernas e uma possível redenção no caos

Solo de João Paulo Lorenzon no Teatro Faap parte dos contos de 'Ficções' e reflete a relação do ator com sua avó

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São Paulo

Em cartaz com a peça "Quase Infinito", inspirada no escritor argentino Jorge Luis Borges, o ator e dramaturgo João Paulo Lorenzon tem sempre por perto uma lembrança deixada pela avó, Zezé, uma mulher divertida que chegava a engatinhar ao lado do neto nas ruas de Pinheiros, em São Paulo, quando ele era pequeno.

Era o jeito dela de se aproximar da criança, o que a tornou inesquecível para o artista. Depois que a avó morreu, Lorenzon encontrou uma anotação dela em uma das páginas do livro "Ficções", de Borges, no final do conto "As Ruínas Circulares". "Lindíssimo", escreveu, com uma caneta azul, a professora de geografia.

A imagem mostra um homem com cabelo cacheado e escuro, sem camisa, em um fundo escuro. A iluminação dramática destaca seu rosto e parte do corpo, criando um efeito de luz quente e sombras. Ele está olhando para o lado, com uma expressão pensativa.
João Paulo Lorenzon no solo 'Quase Infinito', em cartaz no Teatro Faap - Divulgação

"Eu, que achava a minha avó lindíssima, quis saber quem era o lindíssimo dela. Foi assim que entrei no universo do Borges e conheci esse poeta cego", diz Lorenzon.

"Quase Infinito", em cartaz no Teatro Faap após uma temporada esgotada no Sesc Pompeia, é dirigida por Elcio Nogueira Seixas. Em 2008, os dois montaram "Memória do Mundo", também inspirada no escritor argentino, e em 2012 Lorenzon estrelou "Eu Vi o Sol Brilhar em Toda a sua Glória".

Desta vez, o solo em cinco atos traz um Borges mais desconstruído, com a dramaturgia alimentada pela atmosfera de alguns contos do escritor. "É uma obra na qual me debruço sobre angústias e dores modernas, mas uso climas e ideias do Borges", afirma o ator e dramaturgo.

São quatro as angústias, com seus respectivos contos inspiradores —o ódio ("O Jardim das Veredas que se Bifurcam"), o nada ("Tlön, Uqbar, Orbis Tertius"), o esquecimento e a incomunicabilidade ("Biblioteca de Babel"). O quinto ato, o jardim, foi criado como uma redenção, um reencontro com a ternura que sobrevive em meio ao caos.

O que mais encanta o ator na obra de Borges são as possibilidades das contradições, a constatação de que, ao perder algo, ganhamos a memória daquilo que se foi. "Eu perdi a minha avó, mas de alguma maneira ela continua aqui. O teatro é uma maneira de eu seguir falando com ela. Às vezes você tem a pessoa do seu lado e não valoriza. Às vezes, você perde alguma coisa e ganha o sentido dela, a dimensão dela".

No ato sobre o ódio, a frase "o esquecimento é ao mesmo tempo uma vingança e um perdão" sintetiza a força e a importância das lembranças.

"Você guarda a pessoa no silêncio. É uma maneira de perdoar e lembrar dos momentos e não sobrepor uma relação falsa a uma relação que foi linda. E, ao mesmo tempo, deixar de falar com a pessoa, não ficar brigando, é uma vingança também", analisa.

O texto de "Quase Infinito" foi escrito durante a pandemia a partir de inquietações vividas pela humanidade e compartilhadas pelo artista. Em sua escola de teatro, por exemplo, Lorenzon conviveu com o sofrimento dos alunos provocado pelo isolamento social.

Ele flagrou uma dor humana moderna que não está restrita aos tempos pandêmicos e é ancorada na relação das pessoas com as ferramentas digitais, nas rotinas robotizadas, sem diálogo e afeto. "Usei o Borges para construir esses climas", diz. "E estou também o tempo inteiro falando da minha solidão, da minha angústia".

Um homem com cabelo cacheado e longo, vestindo uma camisa branca e um paletó escuro, está em uma performance dramática. Ele está em um palco iluminado por uma luz azul, com uma expressão intensa e gesticulando com a mão esquerda, enquanto parece falar com paixão. O fundo é escuro, criando um contraste com a iluminação.
O ator e dramaturgo João Paulo Lorenzon encena o ódio - Divulgação

A literatura do argentino alimentou Lorenzon como um guia na escuridão da pandemia, como se ela fosse um convite para acreditar que novos sonhos e novas realidades surgiriam.

Seixas, o diretor, levou para o espetáculo a atmosfera fantástica, com elementos que sugerem um mergulho na mente humana e com o estímulo a sensações. Sob a direção do amigo, o ator torna-se visceral. "Ele me leva a lugares em que eu não chegaria sozinho. Posso me entregar a sensações, porque tem alguém pensando em tudo isso".

Pairando sobre tudo tem Zezé, que morreu quando o ator tinha dez anos e o marcou com uma relação modificada com a passagem do tempo. Em outros trabalhos, Lorenzon fazia dedicatórias, reconhecia diretamente as influências da avó e sentia o desejo da presença dela na plateia.

"Com o tempo, isso foi se dissolvendo. Agora, quando alcanço um lugar luminoso, é como se estivesse abraçando-a. É como se a gente fosse junto agora." Também somos aquilo que perdemos, mostra o espetáculo.

Quase Infinito

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