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'Limpa' lava roupa suja das relações de classe e gênero no Chile

Romance de Alia Trabucco Zerán é 'falso policial' claustrofóbico sobre mulher pobre que é ao mesmo tempo vítima e suspeita

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Lívia Prado

Historiadora e tradutora, tem mestrado em estudos latino-americanos

Limpa

  • Preço R$ 74,90 (232 págs.); R$ 52,40 (ebook)
  • Autoria Alia Trabucco
  • Editora Fósforo
  • Tradução Silvia Massimini Felix

Uma mulher lava, passa, cozinha, varre, limpa privadas, recolhe o lixo, cuida de uma criança. Menciona "lençóis" 18 vezes. É da narradora de "Limpa", segunda obra de ficção da aclamada escritora chilena Alia Trabucco Zerán, de "As Homicidas".

Sua protagonista é Estela García, que trabalha para uma família abastada, forjada nos moldes neoliberais do pinochetismo. Em um formato familiar para o leitor brasileiro, a empregada mora em um quartículo na casa dos patrões.

A imagem mostra uma pessoa com cabelo curto e escuro, usando óculos e uma camisa preta. Ela está de pé, com os braços cruzados, sorrindo levemente. A luz cria sombras diagonais na parede ao fundo.
Alia Trabucco Zerán, autora de 'Limpa' - Lorena Palavecino/Divulgação

O romance traz à mente a obra de Mierle Laderman Ukeles. Em 1973, enquanto no Chile se gestava o golpe de Estado, a artista reclamava visibilidade para as tarefas domésticas quase sempre realizadas por mulheres.

Em uma performance que buscava eliminar a separação entre seu trabalho como artista e aquele que chamou de "trabalho de manutenção", lavou a escadaria do museu Wadsworth Atheneum em pleno horário de visitas. Meio século depois, Trabucco ocupa o espaço aberto por figuras como Ukeles para que a roupa suja das relações de gênero seja lavada em público e, se possível, na arte.

"Limpa" é, segundo sua autora, "um falso policial". Em seu monólogo, a narradora busca elucidar as circunstâncias da morte, aos sete anos, da filha dos patrões. Suspeita de assassinato, Estela adverte na página dois que "a menina vai morrer" e passa a contar, de contrabando, sua própria história. Esta inclui a infância pobre, mas cercada de natureza, e a mudança para a capital chilena.

A geografia ampla e líquida de sua ilha natal, Chilóe, se contrapõe à hostilidade de uma Santiago onde se vislumbra a convulsão social atravessada pelo país andino nas últimas décadas.

Enquanto o Sul descansa imóvel em sua memória, o tempo de Estela na mansão santiaguina é cronometrado por tarefas domésticas, até completar, como em uma maldição bíblica, sete anos. Afinal, "isto era a vida: frango, cartilagem, que as batatas não grudassem na travessa, que a loucura não aderisse ao crânio, que os olhos não saltassem das órbitas".

A descrição hábil e perturbadora dessa rotina claustrofóbica compõe uma cantilena hipnótica. Quando os dias só se distinguem por referenciais do trabalho —os uniformes de segunda a sábado, a folga aos domingos—, "cada ato é uma tentativa de domesticar o tempo". Contribuem para o magnetismo da narrativa um fluxo de consciência denso, cortes cinematográficos e a tensão da tragédia anunciada.

Com o mesmo frescor vertiginoso, a autora caracteriza a dissolução do senso de identidade de sua protagonista. A reiteração do trabalho e o confinamento alienam Estela e desestabilizam sua realidade, que deve ser enfrentada sem o recurso dos soníferos da patroa.

Como na escrita da alemã Herta Müller —uma das influências de Trabucco Zerán—, essa despersonalização se traduz, por vezes, em ações que independem das personagens. Sem intervenção aparente de Estela, o ferro esmaga as cuecas do patrão e as faxinas são feitas às segundas-feiras. Dotadas de vida própria, as mãos de sua mãe continuam trabalhando durante o sono.

A existência dessa mãe sábia, que também trançou os cabelos de filhas alheias, funciona como esteio mental de uma vida pregressa e posiciona Estela em uma corrente de mulheres que existem para que outras subsistam.

Com enorme destreza literária, Trabucco destrincha relações de classe, gênero e raça, em um lembrete de que o trabalho de manutenção está crivado de violências subjetivas. Assim, constrói uma poderosa protagonista que é, ao mesmo tempo, vítima e suspeita.

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