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31/01/2012 - 07h26

Saif Gaddafi é teste sobre direitos humanos a novo governo líbio

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CHRIS STEPHEN
DO "GUARDIAN"

Para Saif al-Islam Gaddafi, "lar" no momento quer dizer uma sala de estar convertida em uma casa perto de Zintan, uma pequena cidade montanhesa 160 km a sudeste de Trípoli, a capital da Líbia. Sua única companhia é oferecida por guardas uniformizados, e ele não tem direito a receber visitas e nem acesso a televisores, rádios ou Internet.

Gaddafi recebe os visitantes com um aperto de mão dado com a mão esquerda, porque o polegar e o indicador de sua mão direita foram amputados. Ele insiste em que isso aconteceu quando foi alvo de um ataque aéreo da Otan, a aliança militar do Ocidente, mas alguns líbios acreditam que tenha sido por ação de um simpatizante dos rebeldes, como punição pelo hábito de Gaddafi de apontar com o dedo ao arengar os rebeldes em seus programas de TV.

Fred Abrahams, da Human Rights Watch, que recebeu uma das raras autorizações para visita a Gaddafi, reportou que ele parece bem e está recebendo três refeições ao dia. O que lhe falta é acesso a um advogado, ou o direito de estudar as acusações que os novos governantes da Líbia afirmam estão sendo movidas contra ele.

E é por isso que, menos de três meses depois da morte de seu pai, Gaddafi está rapidamente se tornando uma improvável causa para os defensores internacionais dos direitos humanos. É uma reviravolta do destino que ninguém teria imaginado, mas os governantes da Líbia enfrentam críticas crescentes quanto à sua demora em estabelecer um sistema de justiça formal.

Saif sempre foi o mais influente filho de Muammar Gaddafi, e está aprisionado em sua cela improvisada, cujo assoalho ostenta um carpete bege sujo, desde que foi detido por combatentes rebeldes em novembro.

O fato de que as autoridades não o tenham informado das acusações contra ele e nem permitido que faça contato com um advogado gerou fortes críticas dos grupos de direitos humanos.

E o CNT (Conselho Nacional de Transição), que governa a Líbia, agora parece estar em rota de colisão com o ICC (Tribunal Criminal Internacional) por não ter transferido Gaddafi para Haia, onde ele enfrentaria acusações por crimes contra a humanidade.

Ammar El-Darwish - 19.nov.11/Reuters
Saif al Islam, filho do antigo ditador da Líbia Muammar Gaddafi, é visto após sua captura
Saif al Islam, filho do antigo ditador da Líbia Muammar Gaddafi, é visto após sua captura

No mês passado, o ICC definiu o dia 10 de janeiro como prazo-limite para que os novos governantes da Líbia informem o tribunal sobre seus planos para um julgamento que insistem seja realizado em território líbio, e que confirmem, "em caráter de urgência", se o prisioneiro está privado de comunicações. Trípoli ainda não respondeu as perguntas, mas uma visita de Omar al-Bashir, o presidente sudanês que o ICC quer julgar por genocídio e crime de guerra, é vista por alguns como indicação da provável resposta.

"A nova Líbia concederá aos prisioneiros os direitos que Muammar Gaddafi por tanto tempo negou aos líbios?", pergunta Abrahams. "É uma questão que vai definir aquilo que a Líbia pretende se tornar".

O filho de Gadafi, conhecido como playboy, era amigo de Tony Blair e levava uma vida de luxo em sua mansão de 10 milhões de libras em Hampstead Garden, um bairro elegante de Londres. Cimentou contatos com a London School of Economics, que lhe conferiu um controverso doutorado, e prometeu trabalhar pela reforma e democracia na Líbia governada por seu pai.

Quando a rebelião irrompeu, em fevereiro, Gaddafi passou a dividir o poder com seu pai enfraquecido, usando pronunciamentos na TV estatal para lançar diatribes contra os rebeldes. Dirigentes do Conselho Nacional de Transição insistem em que o julgamento será realizado na Líbia e não em Haia.

"O ICC é apenas um tribunal secundário e o povo líbio não permitirá que Saif al-Islam seja julgado fora do país", disse Mahmoud Shamman, um porta-voz do conselho. Mas o ICC insiste em que Trípoli precisa convencer o tribunal de que Trípoli, em meio aos caos do pós-guerra na Líbia, é capaz de servir de cenário a um julgamento justo, de preferência a Haia.

Criar do zero um Judiciário independente encarregado de conduzir um processo por crimes de guerra é uma tarefa difícil, diz Sir Geoffrey Nice, jurista britânico que conduziu o processo contra o ex-presidente sérvio Slobodan Milosevic. "Processos por crimes de guerra são complexos. Um dos problemas na administração de justiça pelos vencedores contra os vencidos é que interferência política se torna inevitável".

Os grupos de direitos humanos dizem que o governo de transição está longe de dispor de um Judiciário confiável. "Em lugar de fazerem declarações à imprensa, eles (o conselho) deveriam cooperar com o tribunalº, diz Carla Ferstman, diretora da Redress, uma organização britânica que defende os direitos judiciais. ªEles precisam desenvolver um plano sobre como pretendem tratar os crimes em massa cometidos ao longo dos 40 anos passados".

Agora um confronto com o ICC parece iminente, porque o tribunal insiste em que a missão que recebeu das Nações Unidas no ano passado lhe confere primazia no julgamento de Gaddafi, a menos que a Líbia prove sua capacidade de promover um julgamento justo.

Ismail Zitouny/Reuters
Saif al Islam Gaddafi aparece em avião em Zintan, após ser detido
Saif al Islam Gaddafi aparece em avião em Zintan, após ser detido

A chance de que esse esforço para estabelecer jurisdição obtenha sucesso parece mínima. Gaddafi não é o único membro do passado regime que está prisioneiro em regime incomunicável. Mais de sete mil prisioneiros de guerra estão detidos em instalações improvisadas na Líbia, sem acesso a advogados ou aos documentos sobre os processos contra eles.

Além disso, o Conselho Nacional de Transição ainda nem começou a investigação prometida sobre a morte de Muammar Gaddafi, cujo corpo ensanguentado foi exibido pelas forças rebeldes nas ruas horas depois que o antigo líder foi capturado em Sirte, uma cidade costeira.

A vizinha Tunísia, parceira da Líbia na Primavera Árabe de 2011, no mês passado recusou extraditar o ex-primeiro ministro de Gaddafi, Al-Baghdadi Ali al-Mahmoudi, afirmando que não havia garantias de que ele não seria torturado caso as autoridades o entregassem à Líbia.

O ICC costuma adotar linha dura para com países que desejam promover julgamentos por crimes de guerra em seus territórios. Em junho passado, recusou uma petição do Quênia por autorização para julgar seis funcionários do governo acusados de homicídio em massa, insistindo em que sejam julgados em Haia.

Saif, 39, não é o único membro da família Gaddafi a acusar o conselho de descumprir suas promessas quanto à democracia e o Estado de Direito. A irmã dele, Aisha, exilada na Argélia, contratou o advogado israelense Nick Kaufman, especialista em crimes de guerra, a fim de exigir que o ICC investigue a morte de seu pai.

Donatella Rovera, dirigente da Anistia Internacional, disse que o conselho de transição não estabeleceu um sistema de julgamento com juízes independentes e procuradores capacitados. "No momento, não existe autoridade central real, e por isso é difícil falar em Judiciário independente", diz.

Mas os líderes líbios continuam a insistir em que o país realizará o julgamento. ªEstamos prontos para julgá-loº, disse o ministro da Justiça Mohammed al-Alagy. "Adotamos procedimentos legais e judiciais suficientes para garantir que o julgamento dele seja justo".

O julgamento de Gaddafi será observado com atenção, no país e do exterior. Há rumores de que ele conhece segredos perigosos para algumas pessoas que continuam a deter posições de poder na Líbia.

Enquanto isso, os observadores estrangeiros estarão atentos a revelações de detalhes sobre os contatos entre seu pai e Blair, e sobre o papel central que ele desempenhou na controvertida decisão das autoridades escocesas, em 2009, de libertar por motivos humanitários o prisioneiro Abdelbaset al-Megrahi, condenado pelo atentado contra um avião em Lockerbie, em 1988.

Se a Líbia decidir levar adiante um julgamento desautorizado pelo ICC e sem participação internacional, isso representará problema para o Reino Unido e a França, que apoiaram os rebeldes por meio de ataques aéreos de unidades da Otan, operações de forças especiais e ações diplomáticas. Tanto o primeiro-ministro britânico David Cameron quanto o presidente francês Nicolas Sarkozy investiram capital político em justificar sua intervenção na Líbia, argumentando que o novo regime representará o abandono do passado autoritário do país.

E não é apenas a comunidade internacional que teme que o governo de transição fracasse na criação de um Judiciário robusto. O mesmo medo aflige muitos líbios.

Pouca gente se preocupa com a situação de Gaddafi, nesse país devastado pela guerra. Mas estão surgindo em todo o país protestos contra o conselho de transição, acusado de incompetência e de falta de transparência pelas pessoas a quem alega servir.

"A forma de trabalhar do conselho continua a ser um segredo muito bem guardado, e as reuniões cruciais são sempre sigilosas", disse Hassan el-Amin, líbio que retornou ao país depois de 20 anos de exílio em Londres, com a vitória do levante.

Para os grupos de direitos humanos, o destino de Gaddafi, e dos sete mil outros prisioneiros, servirá como teste do comprometimento do governo para com a justiça. "O Estado de Direito precisa existir para todos", disse Rovera. Mesmo para Saif al-Islam Gaddafi.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

 

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