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'Fui enviada para campo de conversão na Sibéria': como é ser trans na Rússia

Vladimir Putin tem atacado os direitos LGBTQIA+ sob a justificativa de que está lutando pelos valores tradicionais

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Anastasia Golubeva Jenny Norton
BBC News Brasil

Em uma fazenda remota na Sibéria, um homem entregou uma faca a Ada. Na frente deles, estava um porco. "Corte", disse ele. "Se você quer prosseguir com a operação, precisa entender o que significa castração."

Ada, uma pessoa trans, tinha 23 anos. Ela foi induzida a ir a um centro de terapia de conversão após revelar a identidade de gênero para sua família.

A imagem mostra Ada, uma jovem com cabelo ondulado e loiro, olhando para o lado. Ela tem uma expressão séria e está em um ambiente interno, com uma janela ao fundo e cortinas. A iluminação é suave, destacando seu rosto.
Após anos de pressão, Ada deixou a Rússia quando leis repressivas contra a população LGBTQIA+ foram aprovadas em 2023 - BBC

Ela conta que, em 2021, uma parente pediu que a acompanhasse até Novosibirsk (terceira maior cidade da Rússia, situada no centro da Sibéria), onde ela iria se submeter a uma cirurgia cardíaca de grande porte.

Ada diz que um homem os encontrou no aeroporto e, depois de uma longa viagem, o carro parou repentinamente. A parente saiu do carro, o motorista se virou para Ada, exigindo que ela entregasse seu relógio digital e o telefone e disse, sem rodeios: "Agora vamos curar você de sua perversão".

"Foi só quando um pacote de roupas quentes chegou, duas semanas depois, que percebi que não ficaria lá apenas por uma quinzena ou um mês", afirma ela, acrescentando que foi forçada a tomar testosterona, rezar e fazer trabalhos manuais, como cortar lenha.

Confrontada com o porco, ela teve um ataque de pânico e não fez o que lhe foi dito. Finalmente, depois de nove meses, conseguiu escapar. Alguém havia deixado um telefone dando bobeira, e ela usou o aparelho para chamar a polícia.

As autoridades enviaram oficiais ao centro de terapia de conversão. Os agentes disseram que Ada deveria ser autorizada a sair porque estava detida contra sua vontade.

A BBC entrou em contato com o centro, mas a pessoa com quem a reportagem conversou disse não ter nenhuma informação sobre programas de terapia de conversão.

A reportagem também tentou entrar em contato com familiares de Ada, mas não houve resposta.

O período de Ada no local foi o ponto mais baixo de uma batalha que ela diz ter travado por toda a vida —primeiro com sua família, depois com a sociedade em geral e agora com as leis cada vez mais draconianas da Rússia com relação à população LGBTQIA+.

Pessoas trans na Rússia tiveram seus direitos humanos sistematicamente corroídos pela estratégia política do governo de atacar minorias vulneráveis, de acordo com Graeme Reid, especialista independente da Organização das Nações Unidas (ONU).

Um ano após a Rússia aprovar uma lei proibindo a cirurgia de redesignação sexual, Ada diz que as pessoas trans do país foram privadas de seus "direitos mais básicos a uma identidade legal e acesso à saúde".

A nova legislação também impediu que as pessoas alterem seus dados pessoais em documentos —Ada foi uma das últimas pessoas a ter seu nome oficialmente alterado antes de a lei entrar em vigor em julho de 2023.

Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, o presidente russo Vladimir Putin tem atacado os direitos LGBTQIA+, dizendo que está lutando pelos valores russos tradicionais.

Em um fórum cultural em São Petersburgo no ano passado, ele desdenhou das pessoas trans, referindo-se a elas como "transformistas ou trans-algo". E, no fim de 2023, o Ministério da Justiça da Rússia anunciou uma nova decisão, classificando o "movimento LGBT internacional" como uma organização extremista.

Não importa que tal organização não exista. Qualquer pessoa culpada de apoiar o que agora é considerada "atividade extremista" pode pegar até 12 anos de prisão.

Até mesmo por exibir uma bandeira com as cores do arco-íris uma pessoa corre o risco de ser multada e de receber uma sentença de até quatro anos de prisão por reincidência.

Em um dos primeiros processos judiciais sob a nova lei, dois jovens em prantos e aterrorizados compareceram ao tribunal na cidade de Orenburg em março. O crime deles foi administrar um bar frequentado pela comunidade LGBTQIA+. O caso deles ainda está em andamento.

Depois de escapar do centro na Sibéria, Ada se mudou para um pequeno apartamento em Moscou, onde oferecia a outras pessoas trans um lugar seguro para ficar. Mas as novas leis foram a gota d'água para ela. "Eu não podia mais ficar. Tive que deixar a Rússia", diz ela, falando de seu novo lar na Europa.

Para Francis, que deixou a Rússia em 2018, as novas leis significam que ele provavelmente nunca voltará para casa. Mesmo antes de as regras serem introduzidas, as autoridades de sua cidade natal, Ecaterimburgo, haviam tomado medidas contra ele. "Desde que eu me lembro como gente, eu sabia que não era uma menina", diz.

Mas, em 2017, ele se casou com Jack, deu à luz três crianças e adotou outras duas. "Eu disse ao meu marido: 'Talvez eu esteja enganada, mas acho que talvez eu seja trans'."

Eles concordaram que Francis consultaria um médico. "Eles disseram: 'Você é 100% trans.' Eu me senti muito melhor. Tudo se encaixou... Eu entendi. Isso é quem eu sou."

Ele iniciou o processo de transição, mas em pouco tempo as autoridades locais intervieram. Seus dois filhos adotivos foram levados a uma instituição, e Francis foi informado de que seus filhos biológicos seriam os próximos. A família deixou a Rússia e vive na Espanha desde então.

Ally, que é uma pessoa não-binária e usa pronomes neutros, deixou a Rússia em 2022, após a invasão da Ucrânia. Foi uma decisão política, não relacionada às pressões sobre a comunidade LGBTQIA+, mas essas pressões, mesmo assim, cobraram seu preço.

Quando Ally tinha 14 anos, alguém lhe perguntou: "Você é menina ou menino?". "Isso me deu uma grande sensação de alegria —eu estava tão feliz que ela não conseguia distinguir pela minha aparência externa."

Anos depois, Ally disse a uma amiga: "'Acho que não sou uma menina, mas também não acho que sou um menino'. Ela olhou para mim e disse: 'Ah, ok. Faz sentido.'"

"E então continuamos tomando sopa. Foi um dos momentos mais felizes da minha vida."

Ada, uma jovem com cabelo loiro e ondulado está em um ambiente nevado. Ela está sorrindo e fazendo um sinal de positivo com a mão direita, enquanto segura um celular com a mão esquerda. Ao fundo, há árvores e um cenário de inverno.
Ada escapou de centro de terapia de conversão, na Sibéria, depois de nove meses - BBC

Ally agora mora na Geórgia e, no ano passado, decidiu fazer uma mastectomia (cirurgia de retirada das mamas). Familiares próximos ainda não sabem.

"Se eu tivesse ido até meus pais e dito: 'Mãe, pai, sou lésbica', teria sido mais fácil do que dizer: 'Mãe, pai, cortei meus seios e quero que vocês me chamem por pronomes neutros'".

Embora Ally tenha tido um diagnóstico médico antes da nova lei russa que proíbe a mudança de gênero e tenha escolhido um novo nome de gênero neutro, não é mais possível alterar passaportes e outros documentos importantes.

Francis enfrenta o mesmo problema. Todos os seus documentos incluem seu nome anterior, o que causa confusão quando ele recebe um documento de identidade ou precisa preencher formulários.

Mas ele diz que a vida na Espanha é boa. Francis encontrou trabalho em uma fábrica têxtil que diz adorar.

Como Ally, Francis reconhece que o clima de intolerância promovido pelas novas leis anti-LGBTQIA+ na Rússia tornou as relações com sua família mais difíceis.

"Minha mãe não fala mais comigo", diz ele. "Ela acha que desonrei nossa família e tem vergonha de olhar nos olhos dos vizinhos. É como se eu fosse uma aberração, um ladrão ou tivesse assassinado alguém."

E morar no exterior como uma pessoa russa enquanto a Guerra da Ucrânia continua adiciona outra camada de complexidade, diz Ally. "Na Rússia, as autoridades e os setores conservadores da sociedade não gostam de nós porque somos trans. No exterior, as pessoas não gostam de nós porque somos russos."

Tudo o que a comunidade trans realmente quer, diz Ada, é que "as pessoas possam se vestir como quiserem e não tenham medo de serem espancadas. Eu só quero que as pessoas parem de ter de pensar em como sobreviver."


Esta reportagem foi traduzida e revisada por nossos jornalistas utilizando o auxílio de IA na tradução, como parte de um projeto piloto.

Este texto foi originalmente publicado aqui.

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