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18/08/2011 - 22h01

Os matadores de Karachi

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MATTHEW GREEN
DO "FINANCIAL TIMES"

O matador não se deu ao trabalho de bater. Anunciou sua chegada disparando uma saraivada de tiros que atravessaram a porta da casa de Salima Khan. Balas ricocheteavam enquanto ela tentava esconder-se na cozinha. Um dos tiros atingiu Zainab, sua filha de 5 anos e olhos travessos, no braço. Um coquetel Molotov se espatifou, e a casinha pegou fogo. O crime da família: pertencer à etnia "errada".

"Querem matar todos os pashtus", diz Khan, enxugando as lágrimas com seu lenço de cabeça enquanto aninha sua filha no colo. "Rezo a Deus para que haja paz em Karachi." No dia depois do ataque, o corpo chamuscado de um condutor de riquixá do bairro, Orangi Town, foi deixado na rua --um indício sinistro de que os assassinos vão voltar.

Uma guerra em fogo lento pelo controle de um dos grandes motores econômicos do sul da Ásia voltou a ganhar força com uma ferocidade que não era vista desde meados dos anos 1960, quando o Exército do Paquistão reprimiu confrontos nas ruas de Karachi.

Os assassinatos são os dividendos sangrentos de uma disputa que se arrasta há anos entre partidos políticos rivais com raízes nas comunidades étnicas pashtu e mohajir. A violência alcançou um pico novo neste verão. Os ataques a bala e com granadas nas favelas labirínticas deixaram mais de 300 mortos em julho, uma das maiores contagens de mortos já registrada. Com esse número, o total de mortos em Karachi este ano já passa de 800, segundo a Comissão de Direitos Humanos do Paquistão, uma organização não governamental.

Novos homicídios acontecem diariamente. Asif Ali Zardari, o impopular presidente paquistanês, vem se mostrando incapaz de pacificar a maior cidade do país --coração da economia paquistanesa, que movimenta US$160 bilhões por ano, sede de sua bolsa de valores e também de um porto importante no mar da Arábia.

O ministro do Interior, Rehman Malik, foi ridicularizado quando procurou minimizar a importância da violência, sugerindo que 70% dos assassinatos teriam sido cometidos por esposas ou namoradas enfurecidas. Na realidade, a violência soa um alarme quanto às perspectivas de longo prazo de estabilidade no país, cujo destino pode encerrar graves implicações de segurança para o Ocidente.

As preocupações dos EUA e Europa giram em torno do papel obscuro do Paquistão no Afeganistão, o relacionamento ambíguo de seu exército com militantes islâmicos e a segurança de seu arsenal nuclear. Os riscos gerados por esse coquetel volátil foram ressaltados em maio, quando Seals da Marinha americana assassinaram Osama bin Laden, o fundador da Al Qaeda, que estava vivendo escondido a pouco mais de um quilômetro de distância da academia militar do Paquistão. Comparados com isso, os assassinatos politicamente instigados em Karachi podem parecer paroquiais, mas são sintomas de conflitos mais profundos que, em última análise, podem acabar por exercer um papel maior em moldar o destino do Paquistão.

Karachi, mais que qualquer outra cidade, destila o misto de política de armas, tensões étnicas, lutas sectárias, debilidade do Estado, militância e crime organizado que fragiliza o Paquistão por inteiro. São essas tendências que vão determinar se a trajetória hesitante do Paquistão, de governo militar a algo que se assemelha com uma democracia, vai gerar mais estabilidade ou uma fragmentação ainda mais profunda.

"Não estamos evoluindo para uma nação unida. Estamos nos fragmentando em agrupamentos étnicos", disse Amber Alibhai, secretário-geral do Shehri, grupo de pressão que promove campanhas contra a invasão flagrante de terrenos na cidade. "O contrato social entre os cidadãos e entre eles e o Estado foi destruído."

Karachi nasceu em uma planície lodosa na civilização fluvial do rio Indus então conhecida como Sindh. Ao longo dos séculos, as correntes migratórias acabaram por levar para lá os ancestrais de virtualmente todas as comunidades paquistanesas. Mas foi a demografia explosiva dos últimos 50 anos que criou a panela de pressão existente hoje. Karachi, que tinha 450 mil habitantes em 1947, quando o Paquistão se tornou um país independente, hoje possui até 18 milhões.

Apesar de fervilhar de tensões étnicas e sectárias há muito tempo, Karachi tem fama de ser uma das cidades mais seculares e progressistas do país. Mas a cidade nem por isso deixou de sofrer sua devida parcela de ataques militantes --entre os quais um ataque espetacular contra uma base naval lançado a título de retaliação pela morte de Bin Laden.

Na confusão atual de problemas, a narrativa mais clara é uma variante da luta secular entre o líder em exercício e aquele que vem contestar sua liderança. As linhas de combate na política da cidade são assinaladas por bandeirolas estendidas entre postes de luz e mastros de telefonia celular, para marcar o território dos combatentes. Bandeirolas vermelhas, brancas e verdes pertencem à força política dominante da cidade, o Movimento Muttahida Quami, ou MQM. Este deve a base de seu apoio aos mohajires, descendentes dos migrantes de idioma urdu que chegaram aqui, vindos da Índia, durante o nascimento do Paquistão, formando o núcleo de uma classe média nascente. A força do partido se reflete na assembléia provincial de Sindh, onde ele ocupa 28 dos 33 assentos de Karachi.

Bandeirolas vermelhas que enfeitam bairros mais pobres pertencem ao partido que quer contestar a liderança do MQM: o Partido Nacional Awami, ou ANP. Este tem sua base de apoio principal no fluxo crescente de migrantes pashtus das regiões do noroeste, que fazem fronteira com o Afeganistão. Muitos são trabalhadores manuais, guardas de segurança ou motoristas de ônibus multicoloridos enfeitados com coloridos pavões, leões e mandalas.

Complicando o quadro ainda mais, o partido governista de Zardari, o PPP (Partido do Povo do Paquistão), tem suas raízes em Sindh. Para reforçar sua maioria em Islamabad, o presidente enfrenta eternamente seus rivais de Karachi, numa política de coalizão em que os partidos mudam constantemente. A onda mais recente de assassinatos começou no mês passado depois de o MQM ter abandonado a coalizão de Zardari. A violência tende a crescer na cidade quando o partido está na oposição na capital, fato que destaca sua relevância no cenário nacional. Como sempre, cada partido acusou o outro de acender a faísca inicial da violência.

Em um país que enfrenta uma maré crescente de extremismo islâmico, o MQM se enxerga como um reduto de valores seculares, da classe média, apontando orgulhosamente para seu histórico em matéria de reforçar a infraestrutura deteriorante. "Nossos cinco anos de obras de desenvolvimento são mais do que outras pessoas fizeram em Karachi em 55 anos", disse Mustafa Kamal, elogiado por seu trabalho como prefeito entre 2005 e 2010.

Mas críticos acham que o MQM está inextricavelmente vinculado à violência. Os assassinatos de ativistas de todos os lados começaram a aumentar nitidamente em maio de 2007 e cresceram rapidamente após as eleições nacionais de 2008, em que o ANP conquistou suas duas primeiras cadeiras na cidade. Muitos acreditam que o MQM está determinado a impedir que o ANP consiga aumentar sua presença política.

O que é indiscutível é que a política dificilmente poderia tornar-se mais suja do que é em Karachi. A discussão pública gira em torno da forma que o governo local deveria assumir; os partidos diferentes defendem modelos que aumentam suas chances de obter vantagens.

A violência reflete uma disputa mais básica: uma guerra multifacetada pelo controle de votos, terras e esquemas ilegais de proteção e extorsão. Alianças escusas entre figuras poderosas, locadores de barracos em favelas, chefões de tráfico e traficantes de armas a tornam ainda mais letal. Os assassinos nem sempre se limitam a matar. "Eles esquartejam os corpos, os colocam em sacos e os jogam na rua", contou Seemin Jamali, que administra o setor de feridos em um hospital de Karachi.

Os espasmos brutais vêm adquirindo uma qualidade autorreforçadora. Quanto mais medo sentem as pessoas, mais elas se voltam aos partidos em busca de proteção e mais fortes se tornam seus líderes. Os assassinatos já não atingem apenas ativistas dos partidos: basta ser pashtu ou mohajir para ser alvo. Trabalhadores comuns, taxistas e donos de lojas, todos são vistos como alvos legítimos. A comunidade étnica baluchi e outras minorias estão sendo sugadas para dentro da guerra, também.

Buracos de bala que atravessam as portas de lojas no distrito de Qasbar, em Orangi Town, dominado pelo ANP, são sinais deixados por assassinatos recentes. Mohammed Ali, um corretor imobiliário forte e barbado, tem medo de entrar em um reduto do MQM situado a poucos minutos a pé de distância. "Eles pegariam um fuzil e nos matariam --bang, bang!-- porque somos pashtus", explica.

O mesmo medo atinge os mohajires. Malik Mohammed Jamil, um vendedor de autopeças, conta que perdeu cinco parentes quando pistoleiros invadiram o mercado em que fica sua loja, no ano passado. O ataque foi atribuído a militantes baluchis. Desde então, dezenas de comerciantes deram entrada em pedidos de porte de armas. "Este tipo de coisa nos faz sentir que não somos cidadãos do Paquistão", diz ele. "O país foi dividido entre punjabis, sindhis e pashtus."

Com o Estado nem sequer conseguindo suprir eletricidade de modo confiável, as expectativas de justiça são poucas. Com armas e homens em número insuficiente, a polícia tem medo de prender assassinos protegidos por políticos poderosos. "Precisamos da concordância do governo para começar a procurar os responsáveis pelos assassinatos", diz um agente de segurança. "Não a estamos recebendo."

Aqueles que se manifestam para protestar correm o risco de ser silenciados. Nisar Baloch, que liderou uma campanha para impedir um cartel de grileiros de invadirem a área de um parque, foi morto a tiros em 2008 enquanto comprava um jornal para ler o relato de uma entrevista coletiva que tinha dado à imprensa. Em sua casa modesta, onde seu rosto sério está presente em um retrato de tamanho grande, sua irmã, Bahar Nooruddin, condena os políticos paquistaneses. "Eles estão sabendo de tudo o que está acontecendo, mas não querem agir."

A resposta do governo à explosão atual de violência parece repetitiva. Como de praxe, Islamabad ordenou que paramilitares vasculhassem os bairros em busca dos pistoleiros. Houve reuniões com políticos da cidade. Foram oferecidas recompensas por fotos de suspeitos enviadas por telefone celular. Mas a maioria das pessoas acha que é apenas questão de tempo até a próxima onda de mortes.

Existe, contudo, outro lado de Karachi. "Diga adeus às pontas partidas em 14 dias", prometem anúncios de xampu Pantene que têm como alvo a classe média crescente. Consumidores abastados pagam 300 rúpias (US$3,50) para entrar nos restaurantes do novo shopping Port Grand, erguido num terreno esquecido de frente para o mar. A violência pode fechar as lojas por um dia, mas a cidade nunca para por muito tempo.

Essa resiliência é a maior qualidade de Karachi. A questão é se seu manancial de tolerância é igualmente grande. Uma Karachi unificada e em crescimento representaria um farol de esperança para um Paquistão mais pacífico. Por enquanto, porém, os abismos que dividem a cidade --e o país-- se aprofundam um pouco mais a cada sepultura nova que é cavada.

POLÍTICA URBANA

Por que "a distância não tem importância" para a maior força eleitoral da cidade

No mundo sanguinário da política de Karachi, um homem reina supremo. Altaf Hussain, chefe do Movimento Muttahida Quami, o partido político mais poderoso da cidade, exerce um domínio quase hipnótico sobre seus seguidores --fato ainda mais notável quando se considera que ele não põe os pés em Karachi há 20 anos.

Operando desde uma casa na zona norte de Londres, ele faz discursos pelo telefone para comícios em Karachi. Dezenas de milhares de pessoas ficam sentadas de pernas cruzadas, em silêncio fascinado, enquanto sua voz é transmitida por alto-falantes desde 6.400 quilômetros de distância. Funcionários do partido dão presentes a recém-casados em seu nome.

Os acólitos de Hussain defendem sua ausência, apontando para o que aconteceu com Benazir Bhutto, a ex-primeira-ministra assassinada depois de retornar do exílio autoimposto, em 2007. A filosofia de Hussain é exemplificada em um monumento em formato de zigurate, adornado com a escultura de um punho cerrado e o slogan "a distância não tem importância".

Os cultos a personalidades são uma constante na política paquistanesa, mas o fenômeno do MQM é singular. Hussain, que hoje raramente é retratado sem os óculos de sol de aviador que são sua marca registrada, ascendeu de origens humildes para iniciar sua carreira política quando ainda era estudante de farmácia. Ele fundou o partido em meados dos anos 1980 em resposta ao sentimento de marginalização das famílias mohajires-urdus que chegaram da Índia quando da partilha da Índia e Paquistão, em 1947.

Os ativistas de colarinho branco do MQM enxergam seu partido como baluarte do secularismo, enfrentando o extremismo islâmico que vem permeando a sociedade paquistanesa mais e mais e silenciando boa parte da elite liberal, à força do medo. Defendendo uma ética de trabalho da classe média, eles creem que o MQM possa servir como antídoto à política de estilo feudal que vem dominando o Paquistão.

Para seus críticos, o partido se assemelha mais a um sindicato do crime. Com seu histórico de violência brutal, ele é visto como responsável pelas mortes de centenas de opositores. Alguns moradores de Karachi dizem que pistoleiros impõem esquemas de extorsão para encher os cofres do partido e que alguns dos filiados estão em conluio com grileiros de terras e outros criminosos.

À medida que o partido rival Nacional Awami vem ganhando força, graças ao fluxo de migrantes pashtus, o MQM vem mergulhando em uma luta sangrenta pelo poder, luta esta que ganhou contornos étnicos.

No Nine Zero, seu quartel-general fortemente guardado, as salas de reuniões estão repletas de pessoas que buscam a ajuda do sistema assistencialista do partido, que financia clínicas e funerárias e presta assistência desde o berço até o túmulo. Para essas pessoas, o MQM, na prática, tomou o lugar do Estado paquistanês.

Em sua própria sede mais modesta, ativistas do ANP estão convencidos de que o MQM quer negar aos pashtus sua parcela justa no poder. Mas eles dizem que a demografia está de seu lado. "Um de meus colegas tem oito filhos", diz Bashir Jan, alto funcionário do ANP. "Mesmo que matem seis deles, dois vão sobreviver. Eu mesmo tenho sete filhos", acrescenta, rindo.

Tradução de Clara Allain

 

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