De apartamento a vila de idosos, quatro paulistanos contam como vivem na terceira idade

O perfil da população brasileira mudará drasticamente a partir de 2030. Pela primeira vez na história, o país terá mais idosos do que crianças. Serão 41,5 milhões (18% da população) de pessoas acima de 60 anos contra 39,2 milhões (17,6%) das que terão de zero a 14 anos. Hoje os idosos somam 29,4 milhões (14,3% da população).

A mudança se explica pelo aumento da expectativa de vida, que passou de 62,5 anos em 1980 para 75,5 anos em 2017, e a queda na taxa de fecundidade, que se acentuou nos últimos 30 anos —passando de 4,4 filhos em 1980 para 1,7 em 2014.

Essa transição demográfica, que na Europa levou 180 anos, deve acontecer em metade desse tempo no Brasil. Isso implicará em mudanças profundas nas políticas públicas de saúde, assistência social e Previdência.

Um das principais preocupações será a oferta de cuidados. As famílias e o Estado estão preparados? A seguir, conheça quatro histórias de como vivem pessoas acima de 80 anos, a faixa etária que mais deve crescer no país

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No trajeto de 200 metros que faz todos dias sozinha até a banca de jornal, no bairro de Santa Cecília, região central de São Paulo, a aposentada Benvinda Aparecida Próspero, 92, impressiona pela agilidade física.

"Me sinto ótima. Se pudesse, ainda estaria trabalhando", diz Cida, como gosta de ser chamada. Quando se aposentou, aos 52 anos, chefiava a área de recursos humanos de uma empresa americana da área de calçados.

A memória, porém, apresenta falhas. Compra todos os dias o jornal, assiste a programas jornalísticos na TV e no rádio, mas não se lembra de nenhuma notícia.

Faz as mesmas perguntas várias vezes e já não se recorda de datas. "Ela só não esquece o dia 5 [dia de pagamento]", brinca o genro Osmar, 72, dono de um restaurante.

Cida é cuidada pela única filha, Elizabeth, 64. "Ela às vezes me xinga, não quer tomar banho. Tenho dor crônica no ombro, meu marido tem dois stents no coração, mas ela não aceita ajuda de mais ninguém", conta Beth.

Ela já pensou em internar a mãe em uma casa de repouso, mas faltou coragem. "Ela não aceita. Diz que queremos jogá-la fora, como se fosse lixo."

Até três anos atrás, Cida era independente. Ia só para Santos e passava meses no apartamento que tinha por lá. "Sinto falta da praia", lamenta.

Por conta da catarata, praticamente não enxerga mais. Porém, recusa-se a operar. Também tem perda auditiva, mas não quer usar o aparelho.

Para Cida, a pior parte do envelhecimento é perder a autonomia. "Na minha cabeça ainda sou jovem. Queria ter mais liberdade."

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Ela nunca frequentou a escola, mas aprendeu sozinha a ler e a escrever. "Meus pais não deixavam as filhas mulheres estudarem pra não mandar carta para o namorado", conta Tereza Apparecida Christo, 85.

Com dez anos, já trabalhava como doméstica em casas de família. Aos 19, casou-se, teve um filho. Separou-se 12 anos depois. Para sobreviver, já vendeu de salgadinhos a lingeries.

Hoje, com um salário mínimo de aposentadoria, mora sozinha em uma quitinete na Vila dos Idosos, que fica no Pari, zona central da capital. O condomínio é ligado à Secretaria Municipal da Habitação e destinado a idosos de baixa renda e sem família por perto.

"Pago R$ 100 [cerca de 10% do salário mínimo]. Nem dá para falar que é um aluguel."

Ele diz que foi opção sua viver sozinha e não com o filho, de 65 anos, no Rio de Janeiro. "Gosto de fazer o que me der na telha. Como o que quero e quando quero."

O prato preferido de Tereza é torresmo, feito com o toucinho que ela mesmo compra no açougue. Ela tem diabetes tipo dois e taxas alteradas de colesterol, mas não está tomando remédio. "Acabou e não comprei mais."

Não pratica atividade física. Em casa, faz palavra cruzada e assiste à TV. Aos domingos, vai à missa, seu passeio mais frequente. "Já gostei muito de viajar, mas perdi a vontade."

No prédio, tem bastante amigos. "O pessoal não sai da minha porta." Ela diz estar feliz com a velhice e não se sente só. "Tenho saúde, ando onde quero. Vivi a vida inteira sozinha."

Não pensa em arrumar um namorado? "Pra que? Não quero saber de ninguém me perturbando."

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Filha de pai russo e de mãe alemã, Marie Jeanne nasceu em Cannes, na França. Aos 15 anos, mudou-se para o Brasil, onde conheceu o espanhol José Sans, seu marido.

O pluralismo cultural é só uma faceta da história desse casal que vive no Jardim Marajoara, zona sul de São Paulo, e que neste ano comemorou bodas de diamante, 60 anos de união.

Trabalharam juntos, como cabeleireiros, por quase 15 anos. "Sempre formamos uma equipe. Cuidávamos das crianças juntos, cozinhávamos juntos. Não tinha tarefa de homem e de mulher. Sempre um acudiu o outro", diz ela.

E continuam acudindo. Aos 84, Sans tem problema de mobilidade causado por sequela da radioterapia que fez para tratar um câncer de cólon. "O tratamento 'queimou' meu fêmur. Não tenho mais cartilagem, é osso com osso", afirma.

Em razão da retirada do reto, ele usa uma bolsa de colostomia (que retém fezes). É Marie Jeanne, 83, quem o auxilia na higienização da bolsa e no banho.

Ela tem um problema de equilíbrio que a limita a andar sozinha nas ruas. Esse conjunto de restrições tem reduzido bastante os passeios do casal.

Mas nada tira o bom humor da dupla. "Tem tanta coisa que ainda a gente pode fazer. A gente come o que gosta, ele pinta, desenha. Eu gosto de tricô."

Um em cada três idosos brasileiros apresenta alguma limitação funcional, como Sans e Marie Jeane. Desse grupo, 80% (cerca de 6,5 milhões) recebem ajuda de familiares.

O casal conta com o apoio e ajuda financeira dos dois filhos, que moram perto. "Não sei o que seria se eles não estivessem nos ajudando. Só com a aposentadoria passaríamos fome", diz Sans.

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Ao cair e se ver com a perna quebrada, sozinho no quarto e com a casa trancada, o engenheiro Antonio Capozzi, 90, decidiu que uma casa de repouso seria um local mais seguro para ele.

Viúvo desde novembro passado, ele se mudou com discos e livros para o Residencial Lar Santana, no Alto de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, mas segue com uma agenda ativa.

Semanalmente, participa de reuniões na sede da sua indústria de autopeças, encontra-se com o casal de filhos e, às vezes, sai para assistir a concertos na Sala São Paulo. Ele diz que ainda sobra tempo para namorar -não entra em detalhes.

"Aqui eu tenho de tudo. Liberdade para ir e vir, remédio na hora certa, massagem, fisioterapia e exercícios orientados", afirma. A mensalidade no local varia de R$ 9.000 a R$ 15 mil.

Com dois stents cardíacos, ele mantêm sob controle os níveis de colesterol, triglicérides e de glicemia.

No tempo livre, ouve ópera no seu quarto de 35 m² e se dedica à leitura de clássicos. No dia desta entrevista, lia "Buraco da Agulha", de Ken Follet, sobre espionagem. "Leio o dia todo."

Também acompanha com atenção (e preocupação) as notícias sobre a situação política e econômica do país. Há oito anos, sua indústria tinha 750 funcionários. Hoje sobraram 230. "E não tem trabalho para cem. É a pior crise que já vi."

Afirma que "passou a bola" para os filhos. "Agora é com eles. Eu só preciso do suficiente para me manter aqui. Planejo ficar por mais dez anos sem aborrecer ninguém."

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Confira especial Terceira Idade, com reportagens sobre como a população está se preparando para o envelhecimento. Grupo de idosos, por exemplo, estão tendo aula de smartphones e redes sociais. Outros vão se divertir e "enganar a morte" em bailes.

Mulheres maduras, porém, consideram que não são representadas por marcas de cosméticos, enquanto treinos destinados à terceira idade têm aumentado nas academias.

Em outra reportagem, grupo de idosos planejam comunidade manter autonomia e acabar com a solidão, e outros escrevem autobiografias para serem lembrados. Também há pacotes de turismo e dicas de cursos para essa parte da população.

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