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Serafina

Gilberto Gil grava João Gilberto, elogia Psirico e Anitta e cancela turnê para assistir à Copa

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Se eu quiser falar com Gil, tenho que esperar o Carnaval passar. Só na segunda pós-folia se abre uma brecha na agenda do cantor e compositor baiano para falar de Deus, dele mesmo e de João Gilberto, ídolo de Gil e tema do CD que ele lança agora.

"Gilbertos Samba" —produzido por Bem, filho de Gil, e por Moreno, filho de Caetano— é uma coleção de músicas que fizeram sucesso na voz "desafinada" do inventor da bossa nova, como "O Pato", "Eu Vim da Bahia" e "Doralice", reinterpretadas por Gil. "Um disco de sambas que venho desejando e prometendo há anos."

Mas, se Gil quiser falar com o notório recluso João Gilberto, assim como a grande maioria de nós, ele não vai conseguir. Não falou com o outro Gilberto nem antes, nem depois de produzir o CD. "Cheguei a pedir autorização para usar uma música, 'Um Abraço no Bonfá', que acabou não sendo dada", diz. Tem alguma proximidade com João? "Não, ninguém tem", ri o cantor.

Mas ele já falou bastante com João. Sobre música e também sobre macrobiótica. Nos anos 1970, os dois se encontraram em Nova York e João Gilberto se mostrou curioso em conhecer o estilo de alimentação seguido pelo tropicalista. E lá foram os dois experimentar os melhores restaurantes naturebas, para no fim João decretar que era hora de comer um cachorro-quente. "Acho que o que ele quis fazer ali foi dizer: 'Olha, comer é um ato universal'.

"João foi fundamental na formação do menino baiano. Foi depois de ser fisgado pela interpretação de "Chega de Saudade" no rádio, quando tinha uns 16 anos, que Gil correu à mãe para pedir seu primeiro violão —até ali se empenhara em ser tocador de acordeão. "Tentava imitar João mesmo. Queria compreender aquele modo de interpretar as canções, fazer como ele fazia, pra eu ter certeza de que eu sabia o que era aquilo." Desde então, Gil sempre dá um jeitinho de voltar ao repertório de João —que apresenta em shows em abril, no Rio, e em julho, em São Paulo.

ASSISTA AO VÍDEO DA MÚSICA "VOCÊ E EU", DO DISCO "GILBERTOS SAMBA":

Veja vídeo

TANTOS LEPO LEPOS

Se eu quiser falar sobre Gil, posso dizer que ele tem 71 anos e uns 50 de carreira, que ele marcou a história dos festivais de música, cantando "Domingo no Parque" ao lado dos Mutantes, que ele encabeçou o revolucionário movimento tropicalista junto com Caetano, que ele foi preso e exilado pela ditadura militar, que ele foi o ministro da Cultura mais pop do país, que ele é "cantoautor" (como gosta de dizer) de dezenas de músicas que resistem à prova do tempo, que ele formou os Doces Bárbaros ao lado de Caetano, Gal e Bethânia, que ele é dono de uma produtora e do camarote mais cobiçado do Carnaval de Salvador (comandados por sua mulher, Flora) e que ele é pai de oito filhos e avô de oito netos. Mas ele é o Gil e, provavelmente, você já sabe disso tudo.

Recostado em sua cadeira no escritório da Gege Produções, na Gávea (onde as salas levam nomes de suas músicas e o banheiro é decorado com credenciais de shows e condecorações), ele usa sandália de couro nos pés, calça jeans larga no corpo magro que só e camiseta azul da estilista Gilda Midani.

E fala de coisas que talvez você não saiba. Fala, por exemplo, que, entre os novos artistas, gosta de Anitta (do "Show das Poderosas"): "Gosto dela, dela artista, da música, mas dela toda: pelo gosto pela dimensão cênica, pelo traço histriônico, por essa coisa de pertencer a esse mundo das Madonnas e das Gagás e por também ser um desdobramento da Daniela [Mercury] e da Ivete [Sangalo]."

Outro artista que caiu no gosto do cantor foi Márcio Victor, líder da banda Psirico e dono do "Lepo Lepo", hit-chiclete do verão 2014. "Do 'Lepo Lepo' não posso falar porque a primeira vez que eu ouvi foi no Carnaval, cantada pelo próprio, na frente do meu camarote. Não tive tempo de apreciar, avaliar, no meio de tantos lepo lepos como existe no Carnaval da Bahia", diz Gil.

"Mas já vinha prestando atenção no Márcio há muito tempo, desde que ele tocou com Caetano. Lepo, Lepo? Hummm... Não é nada especial pra mim. Márcio Victor é 50 vezes maior que o Lepo Lepo", diz ele, gesticulando muito e sempre as mãos com grandes unhas postiças, feitas de silicone, que lhe servem de palheta.

Se você quiser falar com Gil sobre futebol, é preciso não exigir fidelidade "partidária". Gil torce pro Bahia... na Bahia. E para o Santos em São Paulo, para o Grêmio no Rio Grande do Sul, para o Cruzeiro em Minas Gerais, para o Santa Cruz em Recife, e para o Fluminense no Rio (ao contrário do que muitos pensam o "Alô, torcida do Flamengo", de "Aquele Abraço", é apenas uma tiração com os torcedores do time rival).

Pela primeira vez em décadas, não vai fazer sua infalível turnê anual pela Europa para poder acompanhar os jogos da Copa no Brasil. Mas continua incomodado com uma certa carência de romantismo no nosso Mundial.

"A nova configuração dos estádios, o aumento dos preços, os padrões exigidos pela Fifa, tudo isso afasta um público mais solto, que gosta de ficar em pé, que nunca sentou numa cadeira num estádio de futebol."

"Isso é o modo como o grande negócio do futebol ficou, um objeto de grandes investimentos, de grandes interesses econômicos, ligados em geral aos projetos das elites mundiais", diz Gil, num conformismo inconformado.

E lamenta: "É assim mesmo, esse lado solto, popular, vai ficando pra trás, cedendo espaço a essa racionalidade produtivista, utilitarista, organizada e tal. O sentido romântico, fantasioso do futebol, o futebol de várzea, tudo isso que criou essa grande escola barroca brasileira, tudo isso vai se perdendo".

Gil, o ex-ministro, continua a fazer política quase informalmente. E anda com fé atrás da ex-senadora Marina Silva onde quer ela vá. Vai, portanto, votar em Eduardo Campos, que deve formar chapa com Marina para concorrer à presidência, pelo PSB, na próxima eleição. "Se eles mantiverem a parceria, como tudo indica que manterão, votarei nos dois."

Diz que, hoje, não aceitaria um cargo no possível governo. "Pensando em hoje, não. Pensando em amanhã, não sei. Amanhã é amanhã. Amanhã será outro dia."

Com a presidente Dilma, de quem foi colega de ministério durante o governo Lula, mantém uma relação "de apreço mútuo, de pessoas que se gostam". A pequena rusga que surgiu, anos atrás, quando ele sugeriu que a então ministra da Casa Civil tinha um "lado macho", não atrapalhou o relacionamento.

"Falei. E parece que todo mundo percebe, né? Foi num momento em que tínhamos pautas comuns, uma interação natural como ministros e tal, e eu percebia que ela tinha uma virilidade política...", diz Gil, que elogia, a seu modo, as mudanças pelas quais o visual da presidente passou.

"O jeito como ela está hoje, o corpo que ela tem, o jeito como ela se veste, como se penteia, acho tudo de acordo com um equilíbrio entre autoimagem e imagem pública que ela foi cultivando."

VIDA MEDIANA

Se eu quiser falar com Gil, tenho que entender que há algumas palavras que só soam naturais se ditas por ele: "exterioridade", "desnecessariedade", "dimensão do homem-humanidade". Nenhuma delas, no entanto, aparece no texto da biografia "Gilberto Bem Perto", assinada por ele junto com a jornalista Regina Zappa e lançada pouco antes da polêmica das biografias não autorizadas, no ano passado.

Gil diz que não queria assinar como coautor ("Mas os editores insistiram, e eu não quis brigar"). E também não se sentiu bem ao ser acusado de censor, junto com Caetano, Roberto Carlos e outros grandes, em meio à polêmica sobre censura ("Não me encaixo, não me vejo assim"). "Eu achava e continuo achando que a lei deve contemplar as duas coisas: a liberdade de expressão e o direito à privacidade. É uma coisa complicada de ajustar num mesmo texto, num mesmo tempo-espaço da lei. Mas a gente deve tentar fazer essa conciliação."

E, se alguém quiser se arriscar a fazer sua biografia não autorizada, Gil diz não ter nenhum interesse em fiscalizar. "Minha geração teve essa questão da liberdade sexual. Minha vida sempre foi muito aberta, não há muitos segredos, não há cantos mal iluminados, não tem grandes escândalos. Minha vida é uma vida mediana, nesse sentido. Eu sou uma personalidade muito mediana."

Uma vida mediana que, no entanto, desperta muito interesse. Um mês antes do Carnaval, Gil foi fazer exames de rotina com o doutor Roberto Kalil Filho (o mesmo de Lula e Dilma) no hospital Sírio-Libanês.

Logo, as manchetes da internet começaram a bombar: "Com depressão e problemas cardíacos, Gilberto Gil pode ficar de fora do Carnaval". "Ahaha. Disseram que eu não ia brincar o Carnaval porque eu tava deprimido. Ahahaha."

"Tive que fazer exames pra renovar um plano de saúde porque, com a idade, eles passam a ser mais exigentes", explica Gil. "O mundo midiático é assim. Tudo é matéria prima. Até o meu check-up. Tudo é de interesse público. Não existe privacidade, ninguém pode ser dono nem da sua saúde, nem da sua doença", diz e gargalha o cantor.

E ninguém é mais dono da sua saúde que Gil —que começou a praticar ioga e a seguir a macrobiótica em 1969, na prisão. Carne, come bem de vez em quando. Maconha, largou quando fez 50 anos.

Ainda assim, até para Gil, o tempo transforma as velhas formas do viver. "Não levei um choque, mas passei a perceber que a velhice chega, as funções passam a ter aspectos disfuncionais. Muda vigor, disposição, ímpeto, volúpias..."

E sexo? "Também. É uma coisa que muda. Até fiz uma música sobre isso ['A Faca e o Queijo'], que diz 'mais azuis, menos carmins'. O sexo, pra mim, hoje é assim", sorri. "Mas acho que vai ser sempre importante. Caetano tem uma frase, que não sei de quem é, mas ele gosta de repetir: 'Sexo não é tudo, mas tudo é sexo'", diz Gil. E toma um gole de chá de erva-doce.

MORTE É FATO

"Quer que eu tire a camisa?", diz o senhor cantor de 71 anos, oferecendo sem vergonha seu corpo iogue para as fotos da revista. Escancara os dentes. Arregala os olhos brilhantes —que às vezes e surpreendemente se revelam cinza azulados. Se esfrega e lambuza com o pó dourado, sem ligar para o alerta de sua protetora assessora, Gilda Mattoso: "Cuidado! Vocês vão sujar meu artista!"

Se eu quiser falar com Gil, é preciso falar da morte. Porque ele pensa nela todos os dias, desde que foi aconselhado a fazê-lo pelo amigo e músico suíço Walter Smetak. Como bem sabe quem acompanha sua obra, Gil não tem medo da morte, mas sim medo de morrer: "A morte já é depois que eu deixar de respirar. Morrer ainda é aqui".
"Morrer é ato, morte é fato", diz, com a familiaridade de quem já cantou a morte "sob vários ângulos, vários aspectos".

Mas até que ela chegue, ele não tem grandes planos. "Agora, não quero muita coisa mais, não. Porque a vida também tem sua desaceleração, seu atenuamento, a vida vai ficando mais rala naturalmente."

"Precisa menos de atos e fatos e coisas que celebrem um certo significado do estar vivo, do estar vivendo. Essa coisa de ter que compor muito, cantar muito, fazer muita coisa... Todas essas coisas vão desaparecendo. Eu quero menos, quero ficar mais quieto, naturalmente. Meu nome não precisa circular tanto por aí. Minha imagem não precisa circular tanto por aí. Não preciso que pensem muito em mim."

Aos que apontarem aqui uma contradição entre essa matéria e a fala do artista, Gil avisa que adora conversar —e essa é uma das raras conversas em que ele embarcará para a divulgação do novo disco, "em consideração ao fato de que para esse mundo do disco, da canção, ainda é importante fazer isso. Pra mim mesmo, não tem mais importância nenhuma".

E se Gil quiser falar com Deus? "Cada vez falo mais através do não falar, através do silêncio. Através da desnecessariedade dos símbolos e dos signos." Mas, por força do hábito, o cantor que foi criado como menino católico, crescido em colégio de padre até os 17 anos, também às vezes se pega a rezar. "Na hora que acordo, na hora que durmo, pinço frases importantes, que tenham mais significado."

E, como se já não falasse comigo, dispara a falar com Deus: "Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome... (e continua num crescendo): Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu!"

"Seja feita a vossa vontade. É isso que eu pinço: a vontade de Deus. Que, no fundo, é a vontade do próprio homem. Porque Deus é uma criação do homem. O criador é criação da criatura. Se não fossemos nós pensarmos nele, como é que ele existiria? Então, só existe porque a gente pensa nele, porque a gente diz o nome dele. Deus é uma nominação humana."

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