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Serafina

Ator Paulo José quase teve que fazer plástica para encarnar Macunaíma

Editoria de arte/Revista sãopaulo
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O autor Paulo José, conta, à maneira Mário de Andrade de contar uma história, sobre como foi encenar Macunaíma no cinema e as críticas do diretor Joaquim Pedro de Andrade ao seu nariz, que quase passou por cirurgia para dar o papel ao ator.

DO NARIZ DE MACUNAÍMA E DE OUTROS CASOS DE JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE, HERÓI DE NOSSA GENTE.
POR PAULO JOSÉ

O do nariz foi assim...

Não era de hoje que andávamos juntos, eu mais Joaquim.

Desde "O Padre e a Moça", minha primeira aventura na lanterna mágica chamada cinema que eu gostava de ficar na oca de Joaquim Pedro, em Ipanema, que tinha um diluvião de livros, uma máquina cantadeira e principalmente, muitos primos e primas que lá iam assuntar cinema e outros assombros.

E foi naquela maloca que o herói Joaquim deu de não comer nem dormir, e se pôs a maquinar uns causos tirados do primo Mário de Andrade, que tinha tirado dum alemão de nome Koch-Grünberg, que por sua vez tinha tirado das aventuras e casos pançudos que o povo contava e os papagaios repetiam para que eles não se perdessem.

E de tanta maquinação, nasceu o seu Macunaíma, coisa boa de ler, tão perfeita, tão acabada que parecia que ia virar cinema, assim, de per si, mesmo que ninguém o filmasse.

E eu adormecia e acordava sonhando a mesma coisa: brincar de ser aquele herói que fazia coisas de sarapintar.

No canto da maloca, trepado no jirau de paxiuba, eu espiava o trabalho dos primos que começavam a fazer aquele ror de imaginação virar filme.

Anísio Medeiros, trazendo as tintas dos matos virgens, dos igarapés, dos campos gerais, de tudo que planta e flor, de tudo que tem graça e cor neste Brasil.

E os manos Carlos Alberto Prates e o Eduardo Escorel e a mana Sarah, todos trabucando volta do Joaquim, que ia dando nomes de gente viva às gentes de sua estória.

Grande Otelo virou Macunaíma preto,

Dina Sfat, a Ci Mãe do mato,

Jardel Filho, o Wenceslau Pietro Pietra, aliás o gigante Piaimã, comedor de gente,

Milton Gonçalves, o Jiguê,

Joana Fomm, a Sofará e assim por diante.

E o Macunaíma branco?

Tinha não. Ou tinha mas não tinha ainda de certeza mesmo.

Um periquito que andava por ali assuntando o filme leu o que ia pelo meu bestunto e já foi me consolando:

- Não se avexe mano, não se avexe não, que por morrer um caranguejo o mangue não bota luto.

O padre você já fez

E foi uma mão na luva

Mas agora ceda a vez

Tire o cavalo da chuva

Que é prá não virar freguês...

Botei minha violinha no saco e segui acompanhando as trabucagens dos primos.

Mas o nosso herói Joaquim andava desinquieto.

Se dormia com o olho esquerdo, com o direito vigilava.

Alexandre Eullio, um homem preparado e cheio de letras, explicou então com muita filosofia que Joaquim vivia aquela hora em que o artista tem de fazer sua idéia virar coisa real, entregar sua invenção para algum vivente que lhe dará carne e vida.

E isso as vezes dava uma tristeza misteriosa.

Otelo Macunaíma-preto era o próprio Brasil.

Mas, e o Macunaíma branco?!..

E o herói saiu a perguntar a todos os seres,

sagüis, tatus-mulitas,

mussuãs, matinta-pereras,

pinicapaus e aracuãs,

prá baratinha casadeira,

pro pássaro que grita "taám!" e su

a companheira que responde "taim!",

pros tambaquis e irerês

mas ninguém disse nada.

Não tinha máquina que ajudasse, a decisão era dele, só dele e tinha de agüentar firme no toco.

Com o coração apertado decidiu sair pelo Brasil a fora campeando um algum para seu Macunaíma branco, seguido por um séquito sarapintado de jandaias e araras vermelhas.

Eu ia a seu lado, ouvindo as perguntas de sua cabeça atenta e as respostas de seu coração inquieto.

De A a Z todos os malazarteiros e burlantins entre 25 e 50 anos passaram pela sua frente, de fato ou imaginados.

Quer dizer, todos menos eu, que estava alí, ao alcance da mão e que gauderiava com ele naquela viagem por caatingas,

rios, corredeiras,

matos virgens,

campos gerais

e milagres do sertão.

Passaram-se muitas luas e nada satisfazia o herói.

Uma tarde estava ele aborrecido e silencioso quando o pássaro uirapuru pousou na sua cabeça, começou a cantar e o herói entendeu o que ele dizia.

Joaquim ficou me olhando de um jeito que me deu vontade de dizer:

- Não me olha de banda que eu não sou quitanda,

não me olha de lado que eu não sou melado.

Mas não disse. Aí ele me perguntou de golpe:

- Você topa operar o nariz?

As jandaias e as araras voaram para o alto das carnaubas, o uirapuru saltou para um galho de pau d'arco e eu fiquei ali, feito besta, sem entender nem responder.

O herói repetiu:

- Que me diz, perdiz? C topa operar o nariz?

Eu continuei parado, meio assim-assado, assuntando, numa cisma assombrosa.

E o herói, revirando os olhos de gosto com a minha atrapalhação, foi explicando que eu tinha dois narizes, inimigos um do outro:

um, fino, se visto de lado, outro batatudo, se visto de frente. Irreconciliáveis!, ele disse.

E concluiu:

- Se você ajeita isso a gente filma, parceiro.

- Filma o quê, meu tio?

...Aí então... ele apertou bem os olhinhos e falou prá só eu escutar:

- Você conhece a língua do lin-pin-gua-pa do-po pe-pê?

- Sim-pim, pa-pa-tri-pri-cio-pio.

- Pois então escuite:

gNnpo-ce-pe to-po-pa-pa ser-per ma-pa-cu-pu-na-pai-pi-ma-pa?

Aquilo era mangação comigo. E falei assim:

- Ma-pa-cu-pu-na-pa-í-pi-ma-pa, sem nariz?

Ora, vá desmamar jacu com alpiste, moço!-

Saí batendo o pé, firme, para esconder a brabeza que tomou conta do meu coração narigudo. O uirapuru pousou de novo na sua cabeça e recomeçou a cantar; mas eu nem ouvia mais, distante já légua e meia.

E foi então que o herói saiu do sério de sua voz baixa e falou prá todo mundo escutar:

- Coração dos outros, seu nariz até que é bonitim e não atrapalha!!!...

O uirapuru cantou mais um pouquinho.

- Meus cuidados, vosmicê tem até o nariz do nosso herói, branco de lado, negro de frente e mameluco, mulato, cafuso nos três quartos. Topas ser Macunaíma, parceiro?

Quis responder mas cadê voz para falar? Nem ai...

- Topas?

Nem precisei de boca. Estava todo faceiro, num mexe-mexendo pelo corpo todo que nem quando mulher faz cosquinhas na gente.

Um papagaio muito do verdamarelo fez pouso no meu ombro e me disse ao pé do ouvido:

- É, o que é do home o bicho não come...

Joaquim cerrou os olhos malandros e se riu num riso safado de vida boa.

E debaixo de uma tenda de asas e gritos das araras vermelhas e jandaias

e do papagaio-curraleiro e do xarã do peito roxo,

do ajuru-curau e do ajuru-curica,

da arari, ararica, araraúna, araraí,

maracanã, maitaca,

arara-piranga, caturrita,

canindé,tuins,periquitos

e de todos esses faladores

lá se foi fazer seu filme.

Joaquim Pedro de Andrade, herói de nossa gente!

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