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Serafina

Colunista diz que Brexit o fez deixar de se sentir em casa em Londres

Caco Neves/Folhapress
Ilustração para a coluna Zooropa, de Hinrique Goldman, da revista Serafina 103, de novembro de 2016
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Em 1992, eu já morava em Roma há seis anos e não aguentava mais me sentir tão estrangeiro naquele monolito italiano. A cidade era linda, fiz ótimas amizades mas todos os dias alguém —-ou alguma coisa— me lembrava que eu não pertencia (e jamais pertenceria) a aquele lugar, à sua história e não me fazia sentir bem-vindo.

Podia ser o carimbo vermelho na carteirinha da escola de teatro que me definia como "alievo uditore extra-comunitário" (aluno ouvinte não proveniente da comunidade europeia), podia ser a moça da lavanderia que escrevia "straniero" (estrangeiro) na etiqueta que identificava minhas roupas ou o pedantismo culinário do pai da minha namorada, que gozava dos brasileiros que não tinham noção de como cozinhar um macarrão al dente e achavam que filé à parmigiana fosse um prato típico italiano (mas que provavelmente foi inventado na Moóca).

Às vezes a irritação virava medo quando, por exemplo, as paredes de vários prédios do meu bairro amanheciam pichadas com suásticas acompanhadas por "fuori, ebrei di merda!" (fora, judeus de merda!). Num país com pouquíssimos estrangeiros e minorias étnicas, era normal ouvir terríveis comentários racistas ou islamofóbicos em festas, lugares públicos ou mesmo na televisão. Na Itália, não ser italiano era uma espécie de doença crônica incurável.

Como foi bom mudar para Londres. Ao longo de 24 anos esta cidade-bolha, que só por um mero acidente geopolítico se enraizou na Inglaterra — com a qual aliás passou a cada vez ter menos a ver — virou minha nação.

O dono da quitanda é um hipster sírio que semana passada me desejou feliz ano novo em hebraico; o contador armênio nasceu em Chipre mas cresceu na Austrália e é gay (o marido é um raro londrino); o carteiro campeão de skate é da Letônia e meu filho paulistano está crescendo sem ter a menor noção de que pessoas com proveniências, sotaques, caras, hábitos e nomes às vezes esquisitíssimos possam, por isso, ter mais ou menos direito do que ele de pertencer a este solo e a esta comunidade.

Mas o Brexit está mudando isso tudo, de forma palpável, rápida e violenta. Na semana passada, a Solange, Tocantinense, faxineira em Londres há 13 anos, chegou na minha casa aos prantos. Foi no posto de saúde consultar um médico e exigiram que ela trouxesse um passaporte com visto de residência para que fosse atendida. Médicos e enfermeiros do NHS (o equivalente local do SUS, orgulho do welfare state britânico) estão virando agentes da imigração.

Existe uma proposta no parlamento, apoiada pela Primeira Ministra Theresa May, para que os professores também requisitem passaporte para os alunos nas escolas públicas. Nos últimos três meses - desde que o referendo foi votado –aumentou em 147% a incidência de ataques homofóbicos e em 58% a incidência de ataques a estrangeiros nas ruas do país.

Há poucos dias, num histórico discurso durante a última conferência do Partido Conservador, Theresa May, num dado momento, parou, olhou para câmera e disse: 'Aqueles que se consideram cidadãos do mundo na verdade são nada mais do que cidadãos de lugar nenhum'. Ela estava falando comigo.

Não sei mais para onde ir.

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