Descrição de chapéu Inteligência artificial

Pessoas passam horas para treinar IA sem garantia de receber; entenda como é esse trabalho

Trabalhadores do chamado 'clickwork' têm escolaridade acima da média nacional e recebem na média R$ 1.866 por mês

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São Paulo

"Receba semanalmente via PayPal com base na qualidade e no número de tarefas completas" é a promessa da Remotasks, site que oferece bicos de anotação de dados para treinar inteligência artificial. A plataforma reúne 240 mil profissionais de mais de 90 países.

Os usuários têm de passar por um treinamento para receber as primeiras tarefas, que a reportagem levou pouco mais de uma hora para realizar. Saber inglês é essencial para passar pelo treinamento da Remotasks, embora a empresa não avise durante o processo de cadastro.

Trabalhadores alimentam dados usados por inteligências artificiais - Chris Delmas/AFP

A primeira tarefa entregue à reportagem era descrever, via texto, em inglês, comandos para um braço robótico que mexia objetos em uma casa. Cada instrução devia conter até 20 caracteres.

Para completar a tarefa, era necessário acumular 3.500 pontos de experiência, tal qual em um jogo de videogame. Cada ordem escrita dava um tanto de experiência que variava de zero a 25 —não havia retornos sobre o desempenho, além da pontuação.

Caso as entregas do usuário fiquem aquém do esperado pelo projeto, a Remotasks retira a pessoa da tarefa sem aviso prévio. O trabalho feito até este momento fica sem pagamento.

"Tudo isso, desde o treinamento, é trabalho não remunerado, o que deveria ser proibido em qualquer circunstância", diz o pesquisador Callum Cant, do Oxford Internet Institute.

Procurada pela Folha, a Remotasks não se pronunciou até a publicação desta reportagem.

Uma colaboradora do Remotasks, que pediu para ter a identidade preservada, se disse decepcionada com a plataforma. Ela diz que fez vários cursos, mas não recebeu tarefas para completar.

Os usuários do site de freelance precisam aceitar um termo de confidencialidade para receber tarefas. É proibido divulgar de quais projetos participa, qual o trabalho executado e quem paga pela tarefa.

Essa usuária publicou no Twitter que é possível aumentar os rendimentos ao pedir que filhos executem tarefas mais simples na plataforma. O Remotasks, assim como outras plataformas similares, não pede que os usuários enviem documentos para provar maioridade, ainda que seus termos de uso restrinjam o acesso a menores de 18 anos.

Estudo liderado pelo professor Matheus Viana Braz, da UEMG (Universidade Estadual de Minas Gerais), divulgado em junho, indicou que os brasileiros recebem por hora de trabalho, em média, US$ 1,80 (R$ 9,36, já que na época do estudo o dólar estava cotado em R$ 5,20). Responderam à pesquisa 477 trabalhadores da plataforma Clickworker, a concorrente da Remotasks de maior sucesso no país.

Esse valor equivaleria em uma jornada de trabalho completa a R$ 1.866, ou 1,41 salário mínimo, sem considerar os encargos que a empresa precisa pagar. Os pagamentos costumam variar de país a país, e ficam em uma média de US$ 4,43 por hora em países em desenvolvimento. Quenianos receberam entre US$ 1,32 e US$ 2 para anotar imagens explícitas usadas no treino do ChatGPT.

O Remotasks, apesar de pagar mais do que a média dos concorrentes no país, fica fora dos dez sites mais procurados, já que usuários relatam dificuldades para receber via a empresa de pagamentos estrangeira PayPal.

Essa plataforma de pagamentos é uma das principais clientes da Scale, braço da Remotasks que vende dados anotados para desenvolvedores de inteligência artificial. A holding que controla as duas startups de IA foi avaliada em US$ 7,4 bilhões (R$ 35,5 bilhões), após rodada de investimentos de 2021.

Parte das pessoas que ganham renda com tarefas repetitivas na internet prefere manter silêncio sobre o trabalho para evitar aumentar a concorrência, de acordo com Braz. Durante os últimos anos, sua equipe teve que abordar mais de 800 pessoas para ouvir 34.

As plataformas, em geral sediadas no norte global, costumam repor tarefas em horários incompatíveis com a rotina brasileira. "Uma das alternativas para contornar essa desvantagem é passar a trabalhar no período da madrugada. Isso explica, provavelmente, porque 27,9% da amostra trabalha nas plataformas entre 22h e 1h da manhã e 9,4% trabalha entre 1h e 5h da manhã", diz o relatório.

Os microtrabalhadores brasileiros trabalham em média 15h e 30 minutos por semana, o que rende por volta de R$ 583 mensais. Os sites que oferecem esses bicos se anunciam como formas de renda extra, mas 33,5% dos entrevistados dizem não ter outra fonte de recursos.

Os respondentes do questionário também apresentam nível de escolaridade acima da média da população brasileira, sendo que 43% deles têm ensino médio e 39% superior completo. A frequência de mestres e doutores entre os trabalhadores destas plataformas também fica acima do resto das pessoas do país.

A assessora de imprensa Isabella Velleda retrata o perfil da maior parte de anotadores de dados no país: jovens, mulheres, de grandes centros urbanos que esperam ganhar uma renda extra.

Velleda trabalhou na Appen entre janeiro de 2019 e junho de 2021, durante o tempo em que cursou jornalismo na USP. "Servia para completar a renda que eu recebia do meu estágio."

Nesse período, ela fez tradução, transcrição, coleta de fotos e vídeos, anotação/rotulagem de imagens etc. A tarefa mais comum era avaliar a qualidade de anúncios do Google, de acordo com dados e geolocalização do usuário.

"As tarefas sempre tinham instruções bem específicas, e se você não seguisse elas, você corria o risco de ser retirado do projeto", recorda a hoje assessora.

"No auge do meu trabalho, eu fazia cerca de 60 horas por mês, umas 2h por dia, que rendiam mais ou menos R$ 1.500, a depender da cotação do dólar. Esse valor podia cair nos meses em que eu estava mais ocupada e não podia me dedicar tanto às tarefas ou quando havia escassez de trabalho dentro da plataforma", acrescenta Velleda.

Outro grande cliente da Appen é a Meta, dona de Instagram, WhatsApp e Facebook.

A pesquisa de Matheus Viana Braz, além do questionário, fez entrevistas em profundidade com 15 trabalhadores. Dentro do grupo, cada pessoa trabalhava em ao menos uma e até em quatro plataformas ao mesmo tempo.

Os entrevistados afirmam que as piores tarefas têm a ver com moderação de conteúdo em redes sociais, de acordo com o relatório.

"Eu trabalhava em um projeto do Facebook, tinha que verificar o anúncio, para avaliar se tinha sangue, violência, abuso, se continha arma. Muitas vezes, peguei anúncio pesado", afirmou Pedro, 23, aos pesquisadores. Se a pessoa não tivesse estômago para concluir a tarefa, recebia nada.

Helena, 54, disse aos pesquisadores ter trabalhado em um projeto para treinar robôs aspiradores de pó. O objetivo era evitar que as máquinas engasgassem em fezes de bichos de estimação.

Por isso, ela passou dois dias movendo um cocô de seu cachorro por sua casa, para fazer mais de 250 fotos. "Em dado momento, as fezes do animal começaram a se esfarelar, e Helena diz que teve de explicar a situação à vizinha para pegar outro cocô de cachorro para concluir a tarefa", diz Braz.

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