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fabrício corsaletti

 

02/09/2012 - 03h00

E um muro que me escondam de teus espiões

"O make me a mask" (Oh, faz-me uma máscara), pediu o galês Dylan Thomas (1914-1953) num de seus poemas, e sempre que começo a me sentir vulnerável demais, exposto demais ou ridículo demais, o que comigo acontece regular e infinitamente, lembro desse fragmento de verso, vou até a estante, pego meus "Poemas Reunidos" com tradução de Ivan Junqueira e uma edição em inglês, e leio essa prece terrível --primeiro em português, depois no original.

"Oh, faz-me uma máscara e um muro que me escondam de teus espiões/ Dos agudos olhos esmaltados e das garras que denunciam/ O estupro e a rebeldia nos viveiros de meu rosto." É um poema curto, de 12 versos longos, e dá pra ler várias vezes antes, digamos, de entrar numa reunião ruim de trabalho ou de encarar uma festa de aniversário de um ex-amigo íntimo com quem tivemos problemas, mas não o suficiente pra faltarmos à comemoração.

Ilustração Guazzelli

Eu tinha 23 anos, estava desempregado e precisando de dinheiro. Uma amiga que trabalhava num cursinho pré-vestibular me arranjou uma entrevista com o coordenador de língua portuguesa, redação e literatura. Eu tinha acabado de publicar meu primeiro livro, de poesia, e achei que versos, metáforas, aliterações e esse tipo de coisa talvez tivessem alguma coisa a ver com literatura, com redação, quem sabe até com língua portuguesa.

Levei um exemplar pro coordenador, já que eu não tinha nada no currículo além de alguns trabalhos como revisor. Ele me entrevistou, com a cabeça excessivamente jogada pra trás (não esqueci seu pomo-de-adão), e no meio da entrevista deu um jeito de dizer: é como se você pensasse que pode me comprar trazendo um livro de poemas. Eu sorri --no salão espelhado das pequenas humilhações. Se eu tivesse uma máscara nessa época, ninguém teria visto esse sorriso que não acaba, que não acabará jamais.

Mudança de cenário: eu tinha 16, ela também. Era alta, loira, de olhos verde-azuis, linda e um tanto desengonçada. E era mais inteligente do que eu. Isso não me incomodava. Pelo contrário, era um motivo secreto de orgulho --orgulho dela que, embora superior, não me desprezava, e de mim, que era capaz de lidar de igual pra igual com um cérebro mais poderoso do que o meu. Ela era de São Paulo, eu ainda estava atolado na roça.

Então nossos amigos nos trancaram numa sala vazia, com duas cadeiras uma de frente pra outra e, antes de voltarem pra pista de dança, disseram qualquer besteira cuja tradução poderia ser: conversem até conseguirem se beijar. Ficamos o resto da noite ali, no mínimo duas horas, eu olhando pras minhas mãos, pros meus tênis, pro tapete e pra lareira fria, sem lenha pra queimar. E não trocamos nenhuma palavra. Era como se eu tivesse engolido um passarinho morto. Eu deveria ter ganho uma máscara junto com a primeira lâmina de barbear.

Uma máscara que me impedisse de vomitar. Que me ensinasse a rir ou esquecer quando preciso. Uma máscara pra aceitar e outra pra recusar. Pra jogar no sofá quando volto pra casa.

fabrício corsaletti

Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, Fabrício Corsaletti é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

 

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