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Métodos
e mentalidade da Inquisição perduram no Brasil de
1999
(14/11/1999)
Vai para a tortura
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
O
acusado que vacilar nas respostas, afirmando ora uma ora outra coisa,
vai para a tortura. O suspeito que tiver pelo menos uma testemunha
contra si vai para a tortura.
O acusado contra quem pesarem vários indícios veementes,
mesmo se não houver testemunhas de acusação,
vai para a tortura. Com muito mais razão vai para a tortura
quem, além dos indícios, tiver contra si o depoimento
de uma testemunha.
Essas regras foram tiradas quase literalmente do "Manual dos
Inquisidores", escrito pelo frade dominicano Nicolau Eymerich
em 1376, revisto e ampliado pelo também dominicano Francisco
de la Peña em 1578. Eymerich foi ele próprio inquisidor.
De La Peña atualizou as instruções, compatibilizando
as inquisições romana e espanhola. A tortura de acusados
e suspeitos foi autorizada em 1252 pelo papa Inocêncio 4º.
A partir de 1542 a Congregação do Santo Ofício,
por meio de seus tribunais, centralizou o controle de todos os assuntos
e procedimentos relativos à Inquisição. O lema
do Santo Ofício era: "Misericórdia e Justiça".
A finalidade da tortura, como esclarece de La Peña, é
menos provar um fato do que forçar o acusado a confessar
a culpa. A confissão é o objetivo central da atividade
inquisitória. Para chegar a ela, o inquisidor pode usar de
truques, malícia, fraudes e, em último caso, tortura.
O inquisidor dirá ao acusado ou suspeito que já sabe
de tudo, mesmo que não saiba, fingirá ler documentos
incriminadores, prometerá perdão (mesmo que não
tenha autoridade para dá-lo), colocará junto ao acusado
antigos cúmplices para levá-los à confissão
pela fraude e, finalmente, se nada disso funcionar, avisará
que terá que usar a tortura. Da tortura em processos por
crime de heresia não escapava ninguém. Crianças
de menos de 14 anos não eram torturadas: "Elas serão
aterrorizadas e chicoteadas, mas não torturadas".
O manual não descreve os métodos de tortura porque
os julga de conhecimento geral. Os principais eram o pau, as cordas,
o cavalete, a polé (roda eriçada de farpas) e as brasas.
Critica os inquisidores que inventam novas torturas e os que exageram
em sua aplicação a ponto de matar as vítimas
ou de fraturar seus membros e deixá-las doentes para sempre.
O acusado deve sair inteiro da sessão de tortura, seja para
ser libertado, seja para ser executado.
A Inquisição foi autorizada a funcionar em Portugal
em 1536 e só foi extinta em 1821. No Brasil, governadores,
ouvidores-gerais e bispos exerciam no início a função
inquisitorial. Além disso, havia as visitações
oficiais do tribunal português do Santo Ofício. A primeira
chegou em 1591 e atuou na Bahia e em Pernambuco até 1595.
Outra visitação ocorreu em 1618, também na
Bahia. A mais ilustre vítima da Inquisição
no Brasil foi Antônio José da Silva, o Judeu, levado
a Portugal e queimado em auto-de-fé. Juntando-se Portugal
e colônias, calcula-se que cerca de 30 mil pessoas tenham
sido julgadas, metade das quais foram para a fogueira.
A investigação e punição de crimes civis,
não religiosos, eram reguladas pelas disposições
do Livro 5º das "Ordenações Filipinas",
publicadas pela primeira vez em 1603. Segundo o título 133
do Livro 5º, denominado "Dos Tormentos", se o julgador
achasse que havia motivos suficientes para crer na culpa do acusado,
"mandá-lo-á meter a tormento". O tormento
seria repetido se o acusado confessasse sob tortura mas depois se
negasse a ratificar o confessado.
As penas contidas no Livro 5º incluíam a morte natural
cruelmente para o crime de lesa-majestade (lembremo-nos de Tiradentes),
a morte por fogo até virar pó, para sodomitas e incestuosos,
o corte das mãos seguido de morte para assassinos, a queima
com tenazes ardentes, seguida do corte das mãos e enforcamento
para escravos que matassem seus senhores, os açoites etc.
Entre as penas menores, uma das mais usadas era o degredo para a
África e o Brasil. O Livro 5º vigorou no Brasil até
a publicação do Código Criminal em 1830, muito
da parte civil das "Ordenações" até
a publicação do Código Civil em 1916.
No mundo das relações privadas, sobretudo entre escravos
e senhores, a imaginação de instrumentos e modalidades
de tortura não conheceu limites: correntes, troncos, máscaras,
palmatória, chicote, ferro de marcar a quente, castrações,
amputações de membros, assamento em fornalhas, corpo
untado de mel no formigueiro. A Marinha recorria à chibata
para lanhar o lombo dos marinheiros até que a revolta de
João Cândido e seus companheiros pôs fim à
prática em 1910. O Exército usava a espada para dar
surras nas praças. Como observou mais tarde um marinheiro
contemporâneo de João Cândido, foram as chicotadas
e lambadas que o fizeram entrar "na compreensão do que
é ser cidadão brasileiro".
Não é preciso listar as inovações tecnológicas
na tortura introduzidas pelas Forças Armadas durante a ditadura.
Como diziam Eymerich e De la Peña, elas são de conhecimento
geral. Também é de conhecimento geral a prática
de tortura nas delegacias de polícia, colocada recentemente
em evidência por reportagens sobre episódios policiais
em vários Estados da federação. Quem fizesse
uma história das delegacias de polícia desde 1841,
quando a reforma do Código de Processo Criminal passou para
os delegados as atribuições dos juízes de paz,
mostraria facilmente que pouco mudou até hoje no que se refere
aos métodos de extrair confissão de presos.
Esses métodos são exemplificados pela entrevista de
um investigador da polícia civil do Pará publicada
na Folha do último dia 18 de outubro. Dizendo-se dos menos
violentos entre os companheiros, o investigador informa que a palmatória
e os choques elétricos são rotina nas delegacias e
necessários para lidar com bandido que não quer confessar:
"Trinta bolos de um lado, 20 do outro, se nunca apanhou da
mãe, entrega tudo". "Palmatória é
negócio normal", resume. Os métodos e a mentalidade
do investigador de 1999 não diferiam daqueles usados pelos
inquisidores desde o século 14. Tudo muito antigo, tudo muito
nosso, tudo parte de nossa herança. A reação
indignada à tortura só se verificou depois que as
Forças Armadas a estenderam à classe média
durante a ditadura. Preto e pobre sempre apanharam.
Novidade mesmo neste fim de século só o esquartejamento
com moto-serra.
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encobrimento do Brasil
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