Há várias maneiras de compensar as perversões do modelo federativo do "império brasileiro"

(12/9/1999)

Além de Tordesilhas

JOSÉ MURILO DE CARVALHO

O irreverente Evaldo Cabral de Mello costuma escandalizar ouvintes e leitores com a afirmação de que muitos de nossos problemas estariam resolvidos, ou não existiriam, se nos tivéssemos mantido dentro dos limites do Tratado de Tordesilhas.

Para relembrar, esse tratado, assinado por Portugal e Espanha em 1494, dividia entre os dois países o novo mundo recém-revelado ao Ocidente por Colombo. Projetado sobre um mapa de hoje, o meridiano do tratado cortaria o Brasil de norte a sul, partindo de Belém do Pará até Laguna, em Santa Catarina. Seria uma Belém-Brasília espichada em linha reta para o sul. O Brasil de Tordesilhas sonhado pelo grande historiador incluiria apenas as regiões Nordeste e Sudeste, 30% do elefante geográfico de 8,5 milhões de km2 que nos tornamos.

A irreverência atinge dois tabus nacionais, a unidade e a federação. Os 500 anos da chegada dos portugueses fornecem boa oportunidade para enfrentar tabus. Enfrento-os absolvendo Evaldo de qualquer responsabilidade pelo que vou escrever. Faz parte de nossa auto-imagem ufanista dizer que o país é grande, grandioso, continental. Politicamente, o complexo de grandeza foi sempre traduzido na idéia de império. Antes que alguém grite "monarquista!", esclareço que império é tomado aqui no sentido de unidade político-jurídico-administrativa ampla e complexa, como eram, por exemplo, os impérios romano, austro-húngaro, britânico, soviético. O conceito é compatível com qualquer sistema político.
O complexo de império foi herança de Portugal. Lá o império foi glorioso enquanto durou. Mas durou pouco, menos de um século.

Soçobrou em 1578, quando o exército de d. Sebastião foi massacrado na batalha de Alcácer Quibir, derrota acompanhada dois anos depois pela perda da soberania nacional nas mãos de Felipe 2º de Espanha. O império português sobreviveu inicialmente nos sonhos milenaristas, sebastianistas ou não. Depois vestiu a roupa da nostalgia, como observa com lucidez Eduardo Lourenço em "Mitologia da Saudade".

Feito saudade em Portugal, o sonho do império veio para o Brasil nos navios que trouxeram d. João. Na visão do príncipe e de alguns de seus estadistas, sobretudo d. Rodrigo de Sousa Coutinho, assim como de muitos brasileiros, a grandeza e a riqueza da colônia tornavam viável a realização do sonho do lado de cá do Atlântico.

Apoiada até mesmo pela maçonaria de Gonçalves Ledo, a idéia se impôs com naturalidade e foi concretizada em 1822, graças ao peso da liderança de José Bonifácio. O novo país não seria república, mas também não seria reino. Seria um império. Não teria rei, teria imperador. Enquanto, para desgosto de Bolívar, o império desmoronava na América espanhola, ele se reconstituía nas terras brasileiras. Entre as razões para a adoção da solução imperial e monárquica estava sem dúvida a preocupação em manter a ordem social (leia-se escravidão). Mas estava também o sonho de grandeza. José Bonifácio era contra a escravidão e, ao mesmo tempo, o maior entusiasta do império.

Na conjuntura inaugurada pela revolta liberal do Porto, em 1820, a idéia de império aplicava-se tanto às relações externas do país como ao nexo entre suas partes componentes. O império para fora correspondia à possível federação com Portugal e outras unidades do reino, seguindo o modelo da "commonwealth" britânica ou do Império Austro-Húngaro. Essa alternativa desapareceu com a opção pela independência.

Mais importante era a idéia de império para dentro. Ela apresentava duas vertentes distintas, embora não excludentes. A primeira concebia o império sobretudo como construção de um país poderoso. O projeto era considerado viável graças ao tamanho e aos recursos do território. A condição política para executá-lo era manter a todo o custo o país unido e centralizado. A aspiração de transformar o Brasil em grande potência já está presente na primeira metade do século 19. A outra vertente também visava construir uma grande nação, mas preocupava-se sobretudo com as bases sociais da construção. O principal representante dessa corrente era José Bonifácio. Para ele, só seríamos um grande e poderoso império se construíssemos uma nação integrada, sem a escravidão dos africanos, sem a exclusão dos índios e sem a destruição da natureza.

Há autores que sustentam que nunca deixamos de ser império no primeiro sentido, mesmo depois da Proclamação da República. O argumento é muito complexo para ser discutido aqui. Mas pode-se dizer com segurança que a questão continua atual. Descarto a versão ingênua de império presente em nossa mania de grandeza, na aspiração um tanto ridícula de sermos os maiores do mundo em tudo. Ela apenas desperta reação divertida e complacente de estrangeiros. Anoto a versão perversa contida no projeto de Brasil-potência dos governos militares. Mais importante é ter em conta que o enorme país que temos hoje é produto da visão de império dos políticos do século 19. A unidade do país passou a ser considerada, mesmo na República, conquista indiscutível, tabu político, cláusula pétrea constitucional.

No entanto, cabe fazer a pergunta sugerida pela observação de Evaldo Cabral de Mello: valeu a pena manter unido o país? Valeu a pena o império? Os brasileiros de hoje não estariam melhor, não seriam menos pobres, menos desiguais, mais educados, se vivessem em três ou quatro países diferentes? Frei Caneca argumentava que em 1822 poderiam ter surgido na ex-colônia seis países com regimes distintos, que iam de uma república na Bahia a um Estado despótico no Rio Grande do Sul.

Discute-se muito o custo Brasil, mas não se discute o custo do império. Além do possível efeito de retardamento da Abolição, há outras consequências conservadoras ainda em vigor. Menciono três: a redução da pressão demográfica pelo deslocamento de populações e da fronteira agrícola; a acomodação de interesses de oligarquias regionais financiada por recursos do centro; o bloqueio de reformas políticas graças à tática de jogar os Estados uns contra os outros.

Acrescente-se ainda que a forma federativa assumida por nosso império é particularmente perversa. Alfred Stepan tem mostrado que nossa federação é a mais antidemocrática de quantas existem hoje, no sentido de ser a que mais deturpa a representação política. Ela é também antidemocrática quando cerceia a garantia de direitos civis devido ao controle estadual sobre a polícia e a Justiça. O resultado inicial do julgamento dos responsáveis pelo massacre de Eldorado dos Carajás é a última evidência desse cerceamento.

Mas, com licença de Evaldo, o império não é necessariamente só custo. Entendido à maneira de José Bonifácio, pode ser instrumento de promoção de direitos políticos e civis. E aqui, a José Bonifácio pode-se juntar José da Silva Lisboa, o futuro Cairu, a quem se atribui a observação de que o Brasil seria uma Roma americana. A expressão foi retomada recentemente por Darcy Ribeiro, que falou do Brasil como Nova Roma, ou Roma Tropical. O conceito romano de império, na visão de juristas, inclui tolerância da diversidade de culturas, centralização da organização jurídica, democracia direta, importância dos municípios. Incentivar a diversidade cultural, unificar a Justiça, fortalecer os mecanismos de representação, dar maior peso aos municípios, democratizar a federação seriam medidas imperiais capazes de compensar, talvez com vantagem, os custos do império.

Se há licença de pecar abaixo do Equador, talvez ainda haja salvação além de Tordesilhas.

Leia mais:
500 anos de ilusão

Leia mais:

Marilena Chaui

Bento Prado Jr.

Milton Santos

Evaldo Cabral
de Mello

Jurandir Freire Costa

José Murilo de Carvalho

Pisando os astros
Os esplendores da imortalidade
Vai para a tortura
O encobrimento do Brasil
Além de Tordesilhas
500 anos de ilusão
Crítica e masoquismo
A liberdade dos pós-modernos
O espetáculo do império
Boliche solitário


Hermano Vianna

Luiz Costa Lima