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Na
cerimônia do Oscar, as províncias mundiais dos EUA
buscam o seu reconhecimento
(18/4/1999)
O espetáculo
do império
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
A
cerimônia anual de entrega dos prêmios da Academy of
Motion Picture Arts and Sciences é o império do espetáculo.
Tudo é cuidadosamente planejado, ensaiado, calculado, anunciado
e divulgado. No cenário luxuoso, em atmosfera de brilho e
glamour, movem-se atrizes, atores, diretores e produtores, astros
do firmamento hollywoodiano. E o meganegócio do cinema no
ponto alto de seu ritual de autopromoção.
Olhava um tanto enfastiado (no fundo, só me interessava saber
se Fernanda Montenegro iria ser premiada) o conhecido ritual de
astros e estrelas subindo ao palco para receber os prêmios
e agradecer com as piadinhas de praxe, quando algo inusitado me
chamou a atenção. Apareceu no palco para apresentar
os filmes candidatos ao prêmio um senador do Partido Democrata,
John Glenn Jr. "Um político no espetáculo?",
me perguntei. Logo vi que não.
John Glenn Jr. não estava ali como senador, mas como famoso
astronauta, que acabara de voltar ao espaço já sexagenário.
Ele estava ali como herói norte-americano e foi em louvor
ao heroísmo norte-americano que falou aos astros e estrelas.
"Um herói norte-americano no espetáculo?",
me perguntei de novo. Ainda não passara a surpresa quando
outra maior, quase chocante, surgiu no palco. O presidente da academia,
Jack Valenti, apresentou ninguém menos do que o general Colin
Powell, ex-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas norte-americanas,
nosso conhecido (no Brasil) desde a Guerra do Golfo. Dois dos filmes
que concorriam ao prêmio tinham por tema a Segunda Guerra
Mundial. Referindo-se ao conflito, o general exaltou o patriotismo
que então levou a juventude norte-americana a correr em defesa
da pátria e dos valores que a sustentam.
O que estavam fazendo ali, no meio das luzes do espetáculo,
um herói astronauta e um general vitorioso? Havia mais do
que espetáculo naquele espetáculo. No mínimo,
havia mais do que cinema. Havia política. A cerimônia
tornou-se então mais interessante. Passei a examiná-la
sob o novo registro.
Com os novos óculos, a surpresa reduziu-se. Homenagear um
herói norte-americano, o único vivo, fazia todo o
sentido num momento em que a figura que deveria, pela lógica
do sistema, encarnar as virtudes nacionais, servir de modelo à
juventude, perdera todo o respeito da população (embora
não necessariamente o apoio político) ao longo do
desgastante processo de impeachment. A academia preenchia o vácuo
de liderança moral aberto pelo comportamento desastrado do
presidente da República com a exaltação de
um herói construído fora da política.
A presença do general era ainda mais significativa. No momento
histórico em que os Estados Unidos assumem o papel imperial,
ela vinha afirmar, para fora, a supremacia de seus valores políticos,
ao mesmo tempo em que buscava soldar uma das principais fissuras
que ameaçam internamente a integridade do Império,
a fissura étnica. O general Powell, como se sabe, é
um negro, um afro-americano, como se deve dizer aqui. Mais ainda,
é o negro, o afro-americano que pela primeira vez atingiu
o mais alto posto na hierarquia das Forças Armadas. Exibindo-o,
a academia mostrava, urbi et orbi, um Império unido e sólido,
pronto para exercer o papel de liderança mundial.
O império do espetáculo transmutava-se em espetáculo
do Império, encenado no novo coliseu. A academia fazia mais
do que distribuir prêmios, ela se engajava na promoção
do exercício do novo papel dos Estados Unidos no mundo pós-Guerra
Fria. E o fazia de posição privilegiada, pois seu
espetáculo é visto por milhões de espectadores
em todos os domínios do Império e mesmo além.
Mais do que falar e persuadir, o espetáculo da academia também
coopta, ao admitir entre os concorrentes aos prêmios representantes
oriundos das províncias do Império, desde as mais
próximas até as mais distantes.
A apresentadora, Whoopi Goldberg, também negra, ou afro-americana,
deixou claro esse ponto, ao convidar os estrangeiros a inscreverem
seus filmes, como o fez "that lady from Japan", uma que
ganhou prêmio de documentário. Eles serão vistos,
ela garantiu, e serão premiados na medida de seu mérito.
Os representantes das províncias, por seu lado, consideram
glória suprema receber o reconhecimento do Império.
Vi, quase constrangido, a incontida alegria e o deslumbramento com
que o diretor e ator italiano (Roberto Benigni) agradeceu sua premiação.
Foi melancólico ver um representante da Itália, país
que já foi um dos principais produtores de cinema de qualidade,
desmanchar-se em agradecimentos pelo prêmio que lhe davam.
Para províncias menos importantes, como a nossa, a luta pelo
reconhecimento é mais árdua. Em contrapartida, é
ainda maior a ânsia com que o prêmio é buscado,
como se dele dependessem a honra e a glória nacionais. Tal
busca de reconhecimento pelas províncias era a melhor prova
da capacidade do Império em legitimar sua supremacia.
Excesso de imaginação de minha parte? Lembrem-se do
filme "Independence Day", talvez a mais completa, e bem-feita,
defesa da ideologia do novo Império. Para os que não
o viram, o tema é uma invasão de extraterrestres,
que tiveram o mau gosto de chegar à Terra exatamente no Quatro
de Julho. Os Estados Unidos têm que suspender sua festa de
Independência para liderar a reação mundial
contra os brutais invasores. Dois cidadãos norte-americanos,
um negro, quer dizer, um afro-americano, e um judeu (só faltou
uma mulher), se oferecem para missão quase suicida contra
o poderoso inimigo. O presidente do país (no filme, ele é
um herói) também se voluntaria para combater ao lado
dos soldados.
Após a vitória, ele faz um discurso afirmando que
o Quatro de Julho deixara de ser a data da Independência norte-americana
e passa a ser a da libertação de toda a humanidade.
Os Estados Unidos subsumiam o mundo, inaugurava-se o Império.
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