REFLEXÃO


Envie seu comentário

 
 

urbanidade
21/11/2007

Poesia concreta

A volta aos estudos trouxe-lhe o prazer da poesia e um projeto profissional. Agora, João quer chegar à faculdade

EM 2004, aos 42 anos de idade, João Jesus Santos, que ainda não tinha sequer diploma do ensino fundamental, decidiu voltar para a escola. O que o impulsionou a retomar os estudos foi um único objetivo: conseguir escrever poesias. A súbita decisão ocorreu no Bar do Zé Batidão, no Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, quando viu, pela primeira vez, um sarau. "Não conhecia nem mesmo a palavra sarau."

O que entusiasmou João Santos foi tomar contato, no Bar do Zé Batidão, com uma tribo paulistana - os poetas da periferia, reunidos sob a sigla Cooperifa, de Cooperativa Cultural da Periferia. "Senti muita emoção ao ver pessoas que conheci na infância declamando com tanto entusiasmo." João tinha interrompido os estudos na sétima série para trabalhar. "Passei a ganhar meu dinheiro. Diversão, para mim, era só barzinho e salão de festa." A poesia levou-o a caminhos inesperados e envolveu toda a sua família.

Cerca de 300 pessoas se reúnem nas noites de quarta-feira no Bar do Zé Batidão, onde João Jesus conheceu os mais diversos personagens encantados pela poesia - uma galeria que vai dos repentistas nordestinos aos rappers, passando por sambistas e pagodeiros. "Somos uma espécie de quilombo cultural", define Sérgio Vaz, um dos idealizadores da Cooperifa. De lá se espalharam saraus em diversos pontos da periferia.

Logo João estaria lendo Carlos Drummond de Andrade e, num caderninho, começou a rabiscar poesias. A primeira delas começa assim: "Se eu pudesse contar as estrelas do céu/ Ou medir a imensidão do mar/ Podia dizer com certeza o tempo que irei te amar."

O entusiasmo de João pelas letras atraiu o interesse dos filhos. "Eles ficaram curiosos em ler minhas poesias. De repente, toda a minha família estava influenciada pela poesia." Seu projeto é lançar um livro com suas poesias, todas românticas.
Antes do livro, porém, já conseguiu tirar uma obra do papel. Da poesia, nasceu algo concreto. Inspirado na animação do Bar do Zé Batidão, ele criou um centro cultural em M' Boi Mirim, bairro da zona sul de São Paulo, com aulas de violão, música, esporte, artesanato - e, é claro, poesias. Até o final do ano, deve surgir ali um telecentro, afinal eles já conseguiram a doação de dez computadores.

A volta aos estudos trouxe-lhe o prazer da poesia e um projeto profissional. Agora que concluiu, num supletivo, o ensino fundamental, ele quer chegar à faculdade para se dedicar ao direito. E, para isso, buscou inspiração em Castro Alves, um de seus poetas favoritos, ex-aluno do Largo São Francisco. "O que aprendi, de verdade, com a poesia foi a sonhar."

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

COLUNAS ANTERIORES:
20/11/2007 Quanto custa a calhordice política
19/11/2007
Imagine São Paulo sem a USP e o Masp
14/11/2007
Cinema Paradiso
12/11/2007
Trabalhador é um luxo
12/11/2007
Como ganhar diploma de otário
08/11/2007
Desemprego burro
07/11/2007
Professor punk
06/11/2007
O judeu é mais inteligente?
05/11/2007
Luzes da cidade
31/10/2007
Triângulo amoroso em São Paulo
Mais colunas