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rio de janeiro
28/10/2004

Cenógrafa faz arte de lixo reciclado

São 15h na gerência de divisão da Comlurb (Companhia de Limpeza Urbana) da Nova Holanda, no Complexo da Maré (Zona Norte do Rio). Sob um sol escaldante, no cenário predominantemente masculino, destaca-se a presença de Maria Lúcia Alves, 28 anos, que separa com paciência o lixo orgânico do reciclável. Ao ver centenas de garrafas PET serem descarregadas, a moça não desanima. Ao contrário, vibra com a chegada do plástico, que representa sua renda, sua arte e seu passatempo. Já representou também o ganha-pão de outros moradores da comunidade, em um passado não muito distante que ela espera recuperar.

“Tem gente inscrita para trabalhar comigo, mas falta espaço. Meu sonho é fazer uma linha de mercadorias com o lixo reciclável, para poder vender, e profissionalizar outras pessoas que se interessem”, diz ela.

Foi há cerca de oito meses que a vida de Lúcia, cenógrafa, artista plástica e garçonete, mudou de contornos. Moradora da Baixa do Sapateiro, no Complexo da Maré, desde então ela tem lapidado seu talento para fazer arte com o lixo no atelier que funciona na laje de sua casa, batizado de Luz e Arte. Hoje a artista passa seus dias no espaço da Comlurb, onde faz, por conta própria, a coleta seletiva.

Sua matéria-prima é separada com a ajuda dos garis e o reconhecimento do gerente de divisão local da Comlurb, Agnaldo da Silva. "Já trabalhei com educação ambiental e sei o quanto a coleta seletiva é importante. Gera emprego e renda. O trabalho dela tem tudo a ver comigo e por isso acho legal ela vir aqui, recolher o material, passar essa consciência para outras pessoas”, diz Agnaldo.

Garimpo na infância
Grande parte do que coleta, Lúcia vende para cooperativas. As peças que podem virar arte, ela leva para o atelier. A cenógrafa conta que seu trabalho de reciclagem ganhou impulso quando foi convidada, em julho, para ser uma das coordenadoras da coleta seletiva de lixo durante o evento de moda Fashion Rio, que aconteceu no Museu de Arte Moderna.

“Desde criança que gosto de fuxicar o lixo, criar coisas, fazia bijuterias. Na época do Fashion Rio estava começando a me interessar pelo trabalho de coleta seletiva. Até então, trabalhava como cenógrafa em uma firma e começava a montar o atelier. Foi quando um amigo cenógrafo, que iria trabalhar no evento, me indicou para trabalhar também, fazendo a coleta”.

Desde então Lúcia passou a encarar o lixo com ainda mais carinho. Ela e uma equipe de seis pessoas, todos moradores do Complexo da Maré, coletaram e separaram o lixo orgânico do reciclável durante a semana do evento. Cada container que descarregava, era uma alegria só. O motivo? O material reciclável seria levado para a comunidade e depois trocado por cestas básicas. Segundo Lúcia, não poderia haver melhor recompensa pelo trabalho. E garante: a idéia foi toda dela.


Carinho na coleta de lixo
“Pedi para levar para a comunidade o material recolhido, e a organização do evento gostou. Em um projeto que existe na Mangueira, é possível trocar 100kg de vidro por uma cesta básica. Como catamos 1652 kg, trocamos por 16, distribuídas entre quem trabalhou na coleta”, conta.

Ao todo, foram recolhidas cinco toneladas de material reciclável. “O restante desse material nós vendemos para uma cooperativa e o valor foi dividido entre a gente. Do lixo ficaram também muitos carpetes, que distribuí para os moradores daqui. A Maré toda deve estar acarpetada”, exagera, abrindo um largo sorriso e usando nos pés o último lançamento das sandálias havaianas. “Esse aqui não fui eu que criei, não. Nós ganhamos dois pares cada um, da coleção verão 2004, por termos trabalhado no evento”, diz.

Difícil saber o que não é criação da artista no Atelier Luz e Arte. Com uma garrafa de vidro e um escorredor de macarrão encontrados no lixo, Lúcia fez um simpático abajur. Uma velha moldura de espelho ganhou cores e passou a emoldurar um quadro cuja pintura é assinada por ela e um amigo. A estrutura de uma poltrona jogada às margens de um valão foi decorada com tubos de PVC e papelão, tudo muito colorido.

Disco vira bolsa
Quando Elymar Santos, Julio Iglesias, Elsa Maria, Ritchie, Gilberto Gil, Dicró e Djavan poderiam sonhar em virar bolsas? Pois é. Em suas incursões pela comunidade em busca de relíquias que iriam parar no lixo, Lúcia já encontrou discos de vinil desses cantores e os transformou no acessório feminino. “Fiz esta bolsa com disco de vinil e continhas de madeira de tapete de banco de carro”, diz ela, mostrando a peça ultra fashion. Mas há discos que não ousa transformar em nada. “Queria poder ouvir, mas não tenho vitrola”, lastima ela, que conta em seu trabalho com a ajuda de uma broca de furar vidro e uma máquina de solda.

Na hora de estipular um valor para as mercadorias, ela pensa um bocado. “A bolsa custa R$ 15, o abajur R$ 20... Está caro?", pergunta. É que Lúcia ainda não vende como gostaria. "Até já expus no Largo da Carioca, no Dia do Meio Ambiente, mas quase não vendo porque não saio. Quero arrumar um lugar para vender as coisas que faço...”, deseja.

Há até bem pouco tempo, a artista acumulava montes de lixo – que ela faz questão de frisar: “reciclável” – em um terreno em frente a sua casa, bem próximo a um ponto da Comlurb. Neste local, ela e mais seis moradores da comunidade faziam a coleta seletiva. “A gente saía de manhã para catar lixo pelas ruas e só voltava de noite. As pessoas já tavam conhecendo a gente, ganhamos até um carrinho de mão. Dávamos saco plástico, falavamos para eles separarem lixo orgânico do material reciclável. Eu era responsável pela venda do material recolhido e o dinheiro era dividido entre a gente”, lembra.

Dessa época, a artista guarda apenas boas recordações. “Um dia estava andando e vi no meio da rua vários vidros em formato redondo. Eu e Dona Aparecida viemos carregando até aqui. Eles podem virar uma mesa. Imagina se eu não tivesse a ajuda dela?”.

Mas o terreno onde armazenavam o material foi ocupado e o grupo ficou sem espaço para a atividade. Dona Aparecida Herculano, 57 anos, moradora da Nova Holanda que acompanhava a artista na coleta, lamenta não poder se beneficiar mais do trabalho. “Já fiz de tudo um pouco na vida, não tenho medo de nenhum tipo de trabalho. Cheguei por aqui procurando serviço e acabei trabalhando com a Lúcia. Agora estou sem serviço, sem-terra. Vou voltar a vender salgados”, conta ela, que diz ter tirado R$ 150 por mês com a venda do material reciclado.

Por enquanto, Lúcia tem trabalhado por conta própria em outro espaço, provisório, também da Comlurb. Ela faz muitos planos: “Hoje fico no atelier de binóculo só vendo o que eles despejam no terreno lá debaixo. Se for interessante, pego e trago pra cá”, diz, fazendo graça. Se a prefeitura oferecesse apoio, espaço e estrutura, Lúcia construiria uma oficina, com salas de aula para catadores e recicladores. "Eles poderiam ser alfabetizados e participar de oficinas de arte. A coleta é importante porque dá mais vida útil ao aterro sanitário, já que o material não vai para o lixo”, diz. No que depender dela, a Maré vai ficar limpinha.

 

JULIA DUQUE ESTRADA
do site EcoPop

 
 
 

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