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06/12/2002 - 02h11

"Ônibus 174" vai além da tragédia social

JOSÉ GERALDO COUTO
da Folha de S. Paulo

"Ônibus 174" não é um filme: é uma aula sobre a tragédia social brasileira.

Suas primeiras imagens já são eloquentes. Numa tomada aérea do Rio de Janeiro a partir do norte, vemos primeiro o mar, depois um manto interminável de favelas espalhadas pelos morros e vales até chegar, por fim, aos cartões-postais da cidade: o Pão de Açúcar, a orla dourada da zona sul, a Lagoa, o Jardim Botânico.

É nesse ponto nobre da cidade que irrompe a ocorrência policial esmiuçada pelo documentário: o cerco ao ônibus 174, em que um jovem assaltante, Sandro do Nascimento, mantém dez passageiros como reféns.

O evento em si, transmitido ao vivo pela TV na época (junho de 2000), parece um filme hollywoodiano de ação: o assaltante armado e ensandecido, mocinhas assustadas gritando por socorro, oficiais negociando com o bandido enquanto atiradores de elite procuram a melhor posição.

Mas é o próprio protagonista, Sandro, quem alerta, gritando para o mundo: "Isto aqui não é um filme americano".

A frase poderia servir como subtítulo do documentário de José Padilha. Pois, se a televisão, em sua cobertura sensacionalista, procura apresentar a realidade como um maniqueísta drama hollywoodiano, "Ônibus 174" constrói outro tipo de narrativa.

Descontínua, polifônica, pontuada por silêncios e perplexidades, a história contada pelo documentário rompe estereótipos para que em seu lugar surjam seres humanos, cada um deles marcado por sua trajetória pessoal e pelo lugar que ocupa na sociedade.

A estrutura de "Ônibus 174" é simples e eficaz. Seu centro são as horas de desespero protagonizadas por Sandro e seus reféns e documentadas pelas câmeras de TV.

A progressão do sequestro é interrompida e iluminada por depoimentos esclarecedores: de policiais que participaram da operação, de reféns, de ex-companheiros de Sandro, da assistente social que o ajudava, da tia, da mãe postiça, de repórteres.

Desse modo ficamos sabendo que Sandro viu a mãe ser morta a facadas, morou na rua, sobreviveu à chacina da Candelária, foi preso em reformatórios e DPs.

Mais que isso: vemos imagens dos locais por onde Sandro passou. Favelas, vãos de viadutos, celas de cadeia que parecem depósitos de bichos. Diferentes versões do inferno. Mas não se trata de simplesmente inverter o maniqueísmo oficial e apresentar o bandido como vítima e herói.

Na cuidadosa estruturação do documentário, há espaço também para as razões dos policiais e para o drama dos reféns. Não existem mocinhos nem vilões. O que há é um mundo em que as coisas estão mal organizadas, os destinos descarrilhados.

O mérito maior do diretor José Padilha é o de ter percebido o alcance social, político e até metafísico daquele evento extraído da crônica policial urbana.

Numa determinada esfera, o documentário perfaz uma cuidadosa construção de sentido. Uma porção de depoimentos lúcidos e inteligentes mostra a conexão evidente entre violência e exclusão social. A sociedade brasileira é radiografada impiedosamente em toda a sua cruel desigualdade. Ao mesmo tempo vemos o despreparo policial, a voracidade da mídia, a fragilidade das instituições. O Brasil inteiro fica exposto, sem nenhuma maquiagem.

Mas o que mais perturba em "Ônibus 174" não é o aspecto de denúncia social, mas sim aquilo que escapa a esse diagnóstico. Em outras palavras, inquietante não é tanto o que o filme explica, mas o que resiste às explicações. É o que não tem sentido.

Dos relatos das reféns sobre as horas que compartilharam com Sandro dentro do ônibus -e das imagens que vemos dessa convivência- emerge uma tragédia mais profunda e obscura.

"Ônibus 174" parece nos dizer que, para além do mundo plano e novelesco apresentado nos telejornais, para além do quadro cristalino das análises socioeconômicas, cada indivíduo é um abismo insondável.

No ônibus 174, na tarde de 12 de junho de 2000, algumas dessas vidas à deriva entraram por acaso em rota de colisão. Nenhum dramaturgo conceberia uma cena mais poderosa.

"The time is out of joint", diz Hamlet. Não é essa a essência da tragédia? Nosso tempo saiu dos eixos. Eis a terrível sensação que "Ônibus 174" nos deixa.

  Veja fotos do sequestro do "Ônibus 174"

Assista ao trailer:
  • 56k | alta velocidade*

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