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01/07/2009 - 17h49

Autora chinesa que vai à Flip lança livro sobre o domínio de Mao; leia trecho

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da Folha Online

A Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) recebe nesta quinta-feira (2), às 17h, a mesa China no Divã. Participam do evento os chineses Ma Jian e Xinran Xue, Angel Gurría-Quintana será o responsável pela mediação do debate. Os autores vão discutir diversos aspectos da nação que deve liderar a economia neste século.

Divulgação
Livro mostra espírito da geração que viveu sob o domínio de Mao
Livro mostra espírito da geração que viveu sob o domínio de Mao

Leia entrevista de Xinran concedida à Folha Online

Nascida em Beijing em 1958, a jornalista e escritora Xinran criou, após a abertura política da década de 1980 em seu país, um programa de rádio que, durante oito anos, se tornou uma via de expressão das chinesas vítimas de violência.

Mudou-se para Londres, onde lançou o livro "As Boas Mulheres da China" (2002). Integrou a equipe do "The Guardian" até 2008 e publicou suas colunas em "O que os chineses Não Comem". Também escreveu "Enterro Celestial" (2005) e "Testemunhas da China" (2009).

Em "Testemunhas da China", para elucidar a formação da China contemporânea, Xinran foi em busca de homens e mulheres comuns com mais de 70, 80 anos, das mais diversas regiões e de diferentes classes sociais, e que sobreviveram à miséria e à fome, à invasão japonesa e à revolução, aos desastres do Grande Salto Adiante (1958-1960) e às perseguições e humilhações da Revolução Cultural (1964-1976) para chegar à modernização e ao espantoso crescimento econômico do início do século 21.

A autora reuniu dezenas de histórias reveladoras da vida cotidiana, dos sentimentos e ideais, das dores e alegrias, da fibra e coragem, da resistência física e fortaleza de espírito da geração dos chineses que viveram sob o domínio de Mao Tse-tung.

Leia abaixo um trecho de "Testemunhas da China".

*

YAO POPO ou a Curandeira, de 79 anos, entrevistada em Xingyi, na província de Guizhou, sudoeste da China. Quando Yao tinha quatro anos, sua mãe foi morta e ela foi entregue a um comerciante de ervas medicinais. Casou-se com um músico, filho adotivo do comerciante, e os três viajaram pela China, do rio Yangste ao rio das Pérolas, entre os anos 30 e os 60. Ela afirma que a Revolução Cultural a ajudou: construiu sua casa e toda uma vida a partir daí, pois hospitais e faculdades de medicina foram fechados e as pessoas, então, passaram a procurá-la.

(...)

Minha atenção foi capturada, a distância, por uma mulher cujo rosto parecia iluminado por uma inteligência determinada e peculiar. Ela estava sentada em frente a uma pequena loja conversando com um freguês. Vários tipos de ervas medicinais secas estavam expostos em torno: alguns em sacos pendurados, outros em estantes, amarrados em maços; outros ainda empilhados a seus pés.

Apontei-a para Toby. "É a única pessoa nesta rua que não aparenta estar desanimada, desesperançada da vida. Por que será que ela parece tão diferente de todos os outros neste lugar?"

"Vá falar com ela, eu espero. Não temos pressa." Toby sabe que adoro essas oportunidades de conversar informalmente com as mulheres chinesas -encontros espontâneos podem gerar informação inesperada.

Esperei até que a velha senhora tivesse terminado com o freguês, aproximei-me e iniciei uma conversa. "Olá. Essas ervas todas crescem por aqui?"

"Crescem", respondeu Yao Popo (curandeira, em chinês) com sotaque de Hunan, sem ao menos tirar os olhos do maço de ervas que amarrava.

"E essas? De onde vêm?", voltei a perguntar, tentando fazê-la falar.

Finalmente ela olhou para mim. "Não sou eu quem colho. Os agricultores daqui abastecem meu estoque."

Subi o primeiro dos dois degraus baixos à entrada da loja. "A senhora deve ser conhecida por esses lados, então."

"Sou só uma velha mulher comum", ela sorriu. "Apenas estou por aqui há muito tempo."

"Quando foi que a senhora começou a vender ervas medicinais?"

"Ah, faz muitos anos. Você procura alguma coisa em especial?" Yao Popo percebeu Toby, um pouco afastado da loja. Um estrangeiro era certamente uma visão rara naquela província. "Quem é aquele?"

"Meu marido", expliquei prontamente.

A Curandeira cerrou os olhos para ver melhor. "Ele é alto. E bonito. Minha filha também casou com um estrangeiro, um taiwanês." Muitas pessoas na China rural veem qualquer pessoa de fora do continente como estrangeira -mesmo que, etnicamente falando, seja chinesa. "Ele a trata bem, mas de aparência não é lá essas coisas."

Foi minha vez de sorrir. "Mas a aparência de um homem é assim tão importante?"

"Claro!", ela franziu o cenho. "Senão as crianças nascem feias."

Sorri, mas agora sabia como fazê-la falar. "Quantos filhos a senhora tem?"

Ela ficou satisfeita em responder. "Dois filhos e cinco filhas, uma dúzia de netos e dois bisnetos!"

Mais uma vez, fui lembrada sobre a importância que as mulheres chinesas dão a ter filhos. "Nossa. Que sorte."

"E você?", Yao Popo perguntou, preocupada comigo, de repente.

Fiquei sensibilizada por sua preocupação. "Só um. Ele tem dezoito anos."

"Só um?" Yao Popo não conseguiu esconder seu pesar. "Pelo menos você teve um menino. Antigamente, quando eu era jovem, nos diziam para ter muitos. Se não, todo mundo dizia que você era uma mulher ruim."

Nos anos 50, ignorando os alertas de demógrafos e economistas, Mao Tse-tung incentivou as mulheres a terem quantos filhos pudessem, dizendo-lhes que isso era um ato heroico. Ele pensava que uma população enorme transformaria a China numa superpotência global.
Em seguida, fiz uma pergunta para a qual já sabia a resposta. "Você é mulher- acha realmente que filhos são melhores que filhas?"

Ela me encarou sem compreender. "É porque somos mulheres que precisamos ter filhos, para nos proteger. Antes de 1949, as mulheres que não conseguiam ter filhos sofriam. Meninas eram sempre abandonadas antes dos meninos. Eu mesma quase morri de fome. Não estaria aqui hoje, se meu pai não tivesse se apiedado de mim."

Subi o segundo degrau. "Gostaria de conhecer sua história de vida."

Ela fez um movimento com a mão, desdenhando. "Conhecer o quê? Ninguém presta atenção ao que nós, velhos, temos a dizer, nem mesmo nossos filhos. De que adiantaria eu contar a você? Não desperdice seu tempo nem o do seu marido. Vá, ele está esperando."
Olhando em volta para conferir se não havia outros clientes, sentei num banquinho perto dela. "Não vou antes que me conte sobre a senhora!"

Ela me olhou, surpresa. "Fala sério?", disse, com ar mais grave.

Acedi. "Quero poder contar ao meu filho sobre pessoas como a senhora. Ele se mudou para a Inglaterra seis anos atrás, quando tinha apenas doze anos. Não faz ideia do que é a vida das pessoas comuns na China. Sempre que volto aqui, pergunto às pessoas que encontro o que sabem sobre as vidas de suas mães. A maioria não conhece as histórias das mães ou avós. Quero escrevê-las, para que as próximas gerações as leiam. Não quero que tudo o que a geração da senhora sofreu seja esquecido. Se nossas crianças não souberem o quanto seus avós sofreram, não entenderão como têm sorte. Diga-me por que a senhora parece tão diferente de todo mundo nesta rua, por que parece tão tranquila e feliz."

Ela balançou a cabeça. "Sofri muito mais que qualquer um por aqui."

Contou-me que nascera havia 79 anos em Hunan. Depois que a mãe morreu, quando ela tinha quatro anos, e porque a família era muito pobre, seu pai a entregou, e mais cinco de seus seis irmãos e irmãs, a outras pessoas. Ela acabou com um caixeiro-viajante, vendedor de ervas medicinais, de quem foi mais tarde aprendiz e que tinha também um filho adotivo, cinco anos mais velho que ela, o qual sabia tocar huqin, um tipo de violino chinês com duas cordas. Como era esperta e aprendia rápido, a família adotiva se afeiçoou a ela. Naquele tempo, os médicos usavam música e acrobacias para atrair clientes às suas tendas de beira de estrada, e ela rapidamente dominou vários truques acrobáticos com esse fim - como paradas de mão e de cabeça e rodar jarros com as solas dos pés. Ao mesmo tempo, o curandeiro começou a passar aos filhos alguns de seus conhecimentos sobre a prescrição de ervas. No início dos anos 40, com o país devastado pela guerra, ele se mudou com a família de Hunan para Yunnan, para escapar do conflito. Eram pobres demais para viajar de trem, por isso seguiram a pé e pegaram as caronas que conseguiram, em carroças, veículos de manutenção das ferrovias e assim por diante. Com a preocupação de que, por ser solteira, a filha pudesse ser abusada por soldados que encontrassem pelo caminho, seu pai prontamente a casou com o outro filho. Depois de perambular pelas montanhas de Guizhou por alguns anos a partir de 1946, em 1950 eles aportaram em Xingyi, que àquela altura havia acabado de ser liberada pelos comunistas. O governo municipal os convenceu a se estabelecer ali e os ajudou a abrir uma clínica de medicina chinesa para a população local, que quase não tinha acesso a tratamento médico. Com vinte anos de idade recém-completados, a Curandeira cuidava da família, que crescia, e vendia suas prescrições em casa, enquanto seu pai fazia visitas a pacientes e o marido cuidava da clínica.

"A vida era dura naquela época", lembrou Yao Popo, "com sete crianças pequenas. A cada dia me preocupava com o que iríamos comer no dia seguinte. Por sorte, todos ouviam o que o presidente Mao dizia, que era bom ter muitos filhos, e o governo e os vizinhos davam uma ajuda quando as coisas ficavam difíceis. Não é como agora, que ninguém confia em ninguém, ninguém se ajuda. Antigamente, os funcionários nunca se aproveitavam da gente. Nem nos obrigavam a ter algum certificado de medicina."

Ao mesmo tempo, ela ganhava reputação por suas habilidades médicas; algumas pessoas até consideravam suas prescrições melhores que as de seu marido.

"Você provavelmente não acredita em mim, mas consigo dizer o que há de errado com uma pessoa pelos olhos ou pela cor do rosto - até mesmo pelo cheiro dos peidos ou dos arrotos. Sei curar melhor dores de cabeça, de estômago ou nas juntas."
Tal ideia era extraordinária: que ela conseguisse enxergar através dos pacientes, como uma máquina de raio X. Mas a expressão firme em seu rosto me fez acreditar nela.

*

"Testemunhas da China"
Autor: Xinran
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 482
Quanto: R$ 52
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 

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