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21/03/2004 - 08h24

"Guerra é por petróleo", acusa desertor dos EUA

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RAFAEL CARIELLO
da Folha de S.Paulo, em Nova York

"É uma guerra por petróleo e dinheiro." A opinião sobre o conflito no Iraque vem de onde o presidente dos EUA, George W. Bush, menos esperaria: das fileiras do Exército americano. Seu autor é o sargento Camilo Mejía, 28, nascido na Nicarágua, mas integrante do Exército dos EUA desde 1995.

Sua opinião sobre o conflito, ele diz, foi formada enquanto trocava tiros com os defensores do regime de Saddam Hussein. "Tudo o que disseram para a população americana e para o mundo para justificar essa guerra era mentira."

Ele passou mais de seis meses lutando em Ramadi, a noroeste de Bagdá. Em outubro passado, voltou aos EUA para um descanso de duas semanas. Decidiu que não mais voltaria para a guerra.

Na última segunda-feira, após passar cinco meses escondido, ele apresentou-se às autoridades militares e pediu dispensa da Guerra do Iraque e do Exército, alegando razões de consciência.

"Tomei a decisão de discordar dessa guerra", disse ao se apresentar na base de Hanscom, perto de Boston.

Mejía recebeu a ordem de seguir para a sua unidade da Guarda Nacional, em Miami, na Flórida, onde visitou sua filha, de três anos. Ele passou os últimos meses longe da família, dormindo na casa de amigos, em Nova York e Boston.

Agora, está detido numa base militar no Estado da Geórgia, de onde não pode sair sem permissão dos comandantes, segundo seu advogado, Louis Font. De lá, concedeu entrevista por telefone à Folha.

Ele aguarda para saber se será processado por deserção ou se seu pedido de dispensa do Exército será aceito. Pode pegar até dez anos de prisão.

Mejía, que não é cidadão americano, alistou-se em 1995, um ano após chegar aos EUA --onde não há serviço militar obrigatório, mas, uma vez alistado, o novo soldado compromete-se a servir por oito anos.

Após esse período, ele pode deixar o Exército, a não ser que esteja cumprindo funções de combate no momento do término do contrato. É o caso de Mejía.

Camilo Mejía - Antes de começarmos, quero dizer que adoro o Brasil, o samba, o futebol e Lula.

Folha - O sr. sabe que o presidente do Brasil se opôs à guerra?
Mejía -
Sei. Eu também me oponho à guerra.

Folha - Por quê?
Mejía -
Porque é uma guerra por petróleo e dinheiro. Mas essa é apenas uma entre várias razões. Outra forte razão, que aprendi enquanto estava no Iraque, é que a guerra nunca é justa.

Quando participávamos de combates, as pessoas que nos atacavam não morriam, nós também não. As pessoas que realmente morriam nesses combates eram inocentes, pessoas pegas no meio da troca de tiros. Na maioria das vezes.

Folha - Onde o sr. lutou?
Mejía -
Lutei em Ramadi. Fica cerca de 60 km a noroeste de Bagdá. É uma cidade bastante perigosa, onde Saddam tinha dois palácios e grande apoio popular. Houve forte resistência. Era um dos piores lugares no Iraque.

Folha - Qual a sua função?
Mejía -
Era soldado de infantaria, responsável por um pelotão de oito homens.

Folha - Como líder de seu pelotão, o sr. tentava evitar que pessoas inocentes fossem atingidas?
Mejía -
Na maior parte do tempo, era difícil, porque fazíamos parte de um grupo maior, de uma companhia. Mas sempre que meu grupo saía para fazer missões, eu tentava manter todo mundo a salvo e à distância dos combates.

Folha - O sr. disse que essa guerra é particularmente imoral. Por quê?
Mejía -
Consigo entender o argumento de quem defende uma guerra contra Hitler, por exemplo. Há pessoas que dizem que há guerras justas.

Vamos supor que exista isso. Pois essa, certamente, não é. Tudo o que levou a ela --armas de destruição em massa, ligações entre Saddam e a Al Qaeda, compra de urânio da África, perigo de ataque iminente--, tudo o que disseram para a população dos EUA e para o mundo para justificar essa guerra era mentira.

Folha - O sr. atentou para isso já no Iraque ou chegou a pensar nisso antes de embarcar?
Mejía -
Não havia guerra quando fui para lá. Era o princípio de março. Havia grande oposição ao ataque, a ONU não havia aprovado a invasão, Saddam estava tentando desesperadamente evitar a guerra, destruindo mísseis e tentando negociar, e países como França, Alemanha, Canadá, China e Rússia se opunham ao conflito.

Não acreditei que realmente iríamos à guerra. Pensei que faríamos uma grande demonstração de força para tirar Saddam do poder. Uma vez que a guerra começou, todo o questionamento acabou. Porque estávamos sendo atacados. Se dirigíamos por uma estrada, qualquer troço podia ser uma bomba. A principal preocupação passa a ser permanecer vivo. Mas, quando você volta para casa e começam a perguntar o que aconteceu, você começa a se questionar por que fez aquilo, por que estava lá. A resposta é: petróleo. É completamente imoral.

Folha - O sr. voltou em outubro passado, para passar duas semanas. Todo soldado tem direito a folga?
Mejía -
O Exército tem um programa chamado, se não me engano, "Descanso e Relaxamento". A idéia é que, se você vai passar um ano lá, depois de seis meses tenha um intervalo de duas semanas para voltar para casa e passar um tempo com a família.

Folha - O sr. conversava com outros soldados sobre suas idéias? Havia outras pessoas que pensavam como o sr.?
Mejía -
Deixe-me dizer uma coisa sobre o Exército: as pessoas não acham que podem se expressar. Elas têm medo de dizer o que pensam. Sei que há muitas pessoas contrárias à guerra, mas elas não ficam dizendo isso. Você sempre tem medo de ser punido.

Mas, desde que me entreguei, muitos dos meus amigos da minha unidade no Iraque disseram que me apóiam, que testemunharão a meu favor se necessário. Muitos deles têm suas próprias queixas, dizem que sofreram abusos de seus superiores.

Folha - Como foram esses cinco meses antes de se entregar?
Mejía -
Fiquei na casa de amigos e falei o tempo todo com meu advogado. Trabalhei no meu pedido de dispensa por motivos de consciência. Vivi uma vida pacata e busquei não chamar atenção.

Folha - O sr. viu sua filha nesse período?
Mejía -
Não. Eu a vi por quatro ou cinco horas antes de vir para essa base.

Folha - Por que o sr. decidiu entrar para o Exército?
Mejía -
Estava tentando formar minha identidade e fazer parte dessa sociedade. O Exército pareceu uma boa opção para me juntar às pessoas e chegar ao centro desse país.

Folha - O sr. tem direito a voto nos EUA?
Mejía -
Não, eu não sou cidadão americano.

Folha - O sr. gosta dos EUA?
Mejía -
Sim. Eu acho que o governo mentiu. Mas gosto da liberdade de expressão, identifico-me com as pessoas, minha filha nasceu aqui, eu terminei o ensino médio e fui à universidade aqui. Morei aqui quase tanto tempo quanto na Nicarágua. Não se pode julgar a sociedade americana por seu governo.

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