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Nietzsche
morreu há cem anos, na entrada do século que mais parece ter sido
obra sua, um espetáculo seu, e cem anos depois eu só sei de uma pessoa
no Brasil que está comemorando. O Instituto Goethe não quer nem saber,
as editoras, até onde foi possível levantar, também não, mas Zé Celso
está enterrado outra vez em "O Nascimento da Tragédia", "Ecce Homo",
"Assim Falava Zaratustra".
Cercado pelo acerto entre Silvio Santos e Celso Pitta, que liberou
a construção de um shopping à volta do teatro
Oficina, numa coroação alegórica do cerco "videofinanceiro" do
teatro todo, Zé busca reencontrar a Vontade do poder em Nietzsche,
para a reação. Em outras palavras, busca em Nietzsche o seu eterno
retorno _ele que reabriu o Oficina, sete anos atrás, com um "Ham-let"
inspirado na visão do jovem Nietzsche.
Eu trabalhei na montagem e lembro que o protagonista Marcelo Drummond
viveu exatamente o que descreve "O Nascimento da Tragédia": "O arroubo
do estado dionisíaco, com a aniquilação dos limites da existência,
contém um elemento letárgico no qual submergem todas as experiências
pessoais. Esse hiato de consciência separa a realidade cotidiana da
dionisíaca. Porém, tão logo ressurge na consciência, a realidade cotidiana
provoca náusea. Um estado de espírito ascético, debilitado". No camarim,
depois da farra no palco, Marcelo não abria a boca, vazio. E assim
seguia, até voltar ao personagem no dia seguinte.
O indivíduo dionisíaco de Nietzsche, que dá Hamlet como exemplo, tem
a consciência da "verdade terrível" da existência, daí seu niilismo
quando está fora do "estado dionisíaco", sem as máscaras. Na síntese
do crítico americano Marvin Carlson para a visão de Nietzsche da tragédia,
com citações do próprio: "O trágico grego, ‘tendo ousado encarar a
terrível destrutividade da chamada história do mundo e a crueldade
da natureza’, bem poderia ter sucumbido àquilo que Schopenhauer advogava,
‘uma negação budista da Vontade’. Em vez disso, ele foi ‘salvo pela
arte’. E graças a essa arte também a vida é salva".
Nietzsche,
como ele mesmo disse de Wagner, pode ser descrito como antes de tudo
um homem de teatro. O próprio filósofo, para sobreviver a seu conhecimento
profundo da "verdade terrível" da "realidade cotidiana", vestia máscaras,
como um ator. Assim, conseguia agir. Esse é o homem que afirmou que
os homens são "fenômenos estéticos", compostos de "imagens e projeções
artísticas".
No século 20, suas idéias surgiram em toda parte no teatro, do francês
Antonin Artaud ao americano Eugene O’Neill. Em Nova York, até domingo
30, o diretor Richard
Foreman faz sua comemoração isolada, como Zé Celso, com "Bad Boy
Nietzsche!", espetáculo criado a partir dos textos escritos pelo filósofo
já louco, no fim da vida. Nas palavras do diretor: "Nietzsche se trancou
em sua loucura, mas ele voltou. Sua filosofia é hoje dominante no
mundo ocidental". Por "hoje", entenda-se o novo século _e até a web
pós-moderna, com suas máscaras, como a minha, neste exato momento.
Ao contrário de Deus, Nietzsche não morre.
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19/4/2000 -
Anti-Nelson
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