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Nina Horta

Devagar com a louça

Dona Benta forjou um arquétipo de avó do qual todos se lembram, mas a maioria não teve

Recebi muitos e-mails zangados porque não gosto de ser chamada de Dona Benta. Acho que é próprio da velhice não se enxergar vintage. E o que quero dizer é que a tal avó fazendo bolinhos, mansa, é rara. É maravilhosa, não nego, mas é rara. Um pouco fruto da nossa vontade de ter uma avó assim.

A Dona Benta, do livro de receitas, além de não existir, forjou um arquétipo de avó do qual todos se lembram, mas a maioria não teve, na realidade. Quem teve deve estar hoje com uns 150 anos de idade.

De castigo, vamos refrescar a memória lembrando o que as avós de netos adultos, hoje, experimentaram pelo mundo afora, começando por Londres. O ano de 1990, por exemplo. E não é antipatia. Já era cronista da Folha e minha profissão pedia que experimentasse os restaurantes e as comidas. (E, se não fosse, não vejo por que não poderia contar, também.)

Junto do Tâmisa, o restaurante River Café, menu escrito à mão, pequeno, mas a comida ótima, e o lugar bonito, branco, claro, com um relógio projetado em sombra na parede, caminhando para a última hora, 11 da noite, quando o restaurante fechava. Uma experiência informal de boa comida, alto-astral, gente simpática e alegre.

Comemos "insalata de copa di Parma". Os verdes eram uma mistura de dente-de-leão, azedinha, rúcula, segurelha. Depois, linguine com "granchio", massa com siri fresco, pimenta, salsa, coentro e, para terminar, um ossobuco de não botar defeito.

Quem comanda hoje é Ruth Rogers, e parece que o lugar resiste a tudo, ao tempo, às recessões. Estar na moda é ser bom.

A emoção, mesmo, veio com o restaurante do Alastair Little, que leva o nome do proprietário e chef. Para não enrolar, ele é do tipo genial. Você lê o menu, que muda todos os dias e é curto e pouco explicativo, e não fica muito tentado.

O lugar é pequeno, guardanapo de papel, mesa sem toalha, nada que inspire muito. Mas quando o prato chega, há que se ficar agradecido e comovido. Aquele toque único de inspiração e gênio.

Sempre tenho medo das misturas esdrúxulas, de uma "nouvelle cuisine" mal digerida. Esse homem é pura graça, bom gosto, coerência, simplicidade. Mediterrâneo? Japonês? Eclético? Não. Pessoalíssimo.

Usa técnicas e ingredientes japoneses, tailandeses, chineses, franceses, ingleses e sintetiza tudo em comida boa e simples. Falar é fácil. Mas foi lá que entendi de verdade o que é síntese. Um estar à vontade entre técnicas e ingredientes e usar de tudo um pouco sem privilegiar correntes ou modismos.

Os molhos perfeitos, sempre cuidadíssimos, criatividade domada. É demais. (Não parece uma crônica feita ontem, num bom restaurante de São Paulo?) Comemos um bacalhau fresco, posta grossa sobre molho de carne ferruginoso, com um pouco de grão-de-bico.

Parece coisa de Dona Benta? Não, moderno até hoje. Vamos devagar com a louça, a avó dessa época já tinha 20 anos de Bocuse marqueteiro no lombo. Ele começou nos anos 70 e, se ela passava os dias fazendo bolinhos, talvez fosse para vender, pagando com isso a faculdade em que estudava à noite. Meninos, eu vi.

ninahorta@uol.com.br

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ninahorta.blogfolha.uol.com.br


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