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Um chef na sala de cirurgia

Ao visitar salas de cirurgia e autópsia, Tsuyoshi Murakami, do Kinoshita, redescobre a cozinha

MORRIS KACHANI DE SÃO PAULO

Desde que Alex Atala apareceu em um palco degolando uma galinha, no final de agosto, em um evento na Dinamarca, a temática sobre morte e comida voltou à tona no rastro de uma grande polêmica. Chefs e especialistas da cozinha brasileira dividiram-se ante as reações negativas que se espalharam pelas redes sociais.

Para Tsuyoshi Murakami, 44, do badalado Kinoshita, a questão vai muito além. Na condição de observador, o chef japonês tem o costume de frequentar salas de cirurgia e de autópsia, estabelecendo relações com o cotidiano na cozinha. "Gosto de ver a liderança do médico e a logística com os enfermeiros, assistentes, anestesista", exemplifica. "Existe um senso de equipe, como no Kinoshita", acrescenta.

Ele enxerga paralelo também com o conceito da kappo cuisine, trazido do Japão, e que apregoa a ideia de se cozinhar na frente do cliente com os melhores ingredientes sazonais disponíveis, passando pela sequência harmoniosa dos pratos e sua delicada apresentação: "Tem que ser preparado e servido o mais rápido possível, se não a comida perde a energia. Na cirurgia é igual, se demorar pode gerar infecção ou morte".

Cortes, cauterizações, o frescor da carne e a vitalidade dos órgãos são os aspectos que despontam, numa conversa iniciada com um copo do suave saquê japonês Hakutsuru Dry, em seu restaurante, e com direito a exibição de fotos sacadas de seu celular, de um coração pulsante, de um aparelho digestivo exposto...

Ele já acompanhou uma cirurgia de aneurisma na aorta abdominal, com retirada e colocação de prótese, outra de carótidas em uma senhora de 71 anos --"foi uma cirurgia linda, com a retirada da veia"-- e inúmeras de ortopedia, coluna, joelho.

Os convites costumam partir de amigos e clientes médicos. Ele prefere não identificá-los por uma questão de privacidade. As visitas se sucedem de duas a três vezes por ano.

"Elas servem para eu me tornar uma pessoa melhor, para eu cozinhar melhor. Fazem respirar, te dão mais respeito ao fatiar um simples tomate ou desossar um peixe", explica ele, enquanto prepara uma entrada com folhas de bonito seco sobre um tomate momotaro (japonês, mais adocicado) e broto de nabo, salpicado com gengibre cortado na faca.

"As pessoas precisam se conhecer melhor, não só por exames de sangue, tomografias ou chapas. Eu me sinto mais leve assim", filosofa o chef, que também faz psicanálise, aula de piano e aula de redação, com o escritor Ricardo Lísias.

Após cortar um palmito imperial grelhado e servi-lo puro, Murakami conta que seu interesse surgiu ao acompanhar o nascimento do filho na sala do parto, em 2001. Primeiro, ele cuidou de fotografar o parto e, depois, fez questão de recolher "tudo mais que saía da barriga da esposa, como pedacinhos de carne e gordura", para examinar a textura e o cheiro.

Hora do sashimi feito com o famoso atum valenciano do tipo Bluefin, com um pouco de flor de sal e shoyu caseiro, e uma pequena bolota de arroz à parte. Murakami comenta sobre uma cirurgia de endometriose que acompanhou: "Já vi o aparelho feminino por dentro e por fora. Óvulos, trompa, útero. É como quando você está limpando um peixe ou um frango, se tocar na veia estoura tudo".

"Quando você vê um corpo que está vivo ou recém-morto, consegue visualizar tudo fresquinho. Um corpo jovem e saudável também é lindo por dentro. Conta com uma textura delicada comparável a proteínas como o pargo, o linguado, o robalo, a vitela, o porco", afirma, enquanto ordena para que seu assistente Alex Iwamura lhe traga um camarão, um polvo e vieira selada de um lado só, para servi-los em molho de missô caseiro e talos da parte branqueada de cebolinha.

"O corpo é um reflexo de tudo aquilo que a gente faz. No corpo de alguém doente a coloração é diferente, a textura é diferente."

Murakami conta que acompanhou a exumação do cadáver do pai para que o irmão, falecido há três anos, fosse enterrado no mesmo caixão. E também o início da cerimônia de cremação do corpo do sogro, falecido há três anos: "O queimar do corpo, assim como qualquer cauterização nas cirurgias, remete ao churrasco e ao bife grelhado: é exatamente o mesmo cheiro", diz, enquanto serve tiras de contrafilé 100% Wagyu, raça japonesa criada pela Yakult em Bragança Paulista.

Quanto aos cortes feitos nas cirurgias, Murakami os considera maravilhosos': "Cortar um homem é a mesma coisa que cortar algum outro animal. Única diferença é que a gente é bípede e tem livre arbítrio".

Um atum de 80 quilos tem a mesma estrutura óssea, pontifica. Já o frango é mais delicado. "É como um peixe pequeno, um leitãozinho de quatro ou cinco quilos. Uma vez no IML acompanhei a retirada de um natimorto. Ele é mais delicado quando você passa a lâmina e a tesoura."

Ao fim, antes de servir uma saborosa sobremesa feita à base de gelatina de saquê e frutas, com gotas de licor de ameixa japonês, Murakami afirma: "Existe um certo tabu com relação ao corpo humano, mas no final das contas você vê que é muito simples. É um retorno às raízes".

Depois de um gole de chá-verde, ele encerra o encontro evocando a "oração ao corpo desconhecido", do patologista austríaco Karl Rokitansky, que executou cerca de 30 mil necropsias no século 19: "Lembra-te que este corpo nasceu do amor de duas almas; por certo amou e foi amado e sentiu saudade de outros que partiram".


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