Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Comida

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Nina Horta

A portuguesinha

Gostava de ir à missa louvar o Senhor... mas o trabalho da doçaria de ovos a deixava tonta

Todo começo de ano baixa-me a portuguesinha dos ovos. Não conheço a portuguesinha, me aparece sempre nesta época, só sei que mora com as freiras e já se cansou de cozinhar.

Eis que chega perto. É quase uma miúda. Veste-se de preto, de monja.

Deixa tombar o cesto de castanhas que leva pendurado ao braço e senta-se à beira do córrego. "Ai, que bem me faz sentar só um pouco nesse chãozito", gemeu, soltando o cordão das botas de cordovão.

"Que louco alívio!" Enfiou os pés na água até os joelhos. Sentiu que a alma se lhe esfriava toda.

"Monjas, ah, as monjas", boa peça lhe pregaram. Tudo combinado com o tiozito inocente! Gostava eu hoje, no primeiro dia do ano, era de estar ao pé da mãe, nos afazeres do almoço, a preparar a açorda com o pão velho, com migalhas e coivinhas, e não estar ali pousada, como que presa, uma criada, e ainda por cima a ouvir sermões e vésperas que mal lhe entravam por um ouvido e já saiam por outro.

Gostava de ir à missa louvar o Senhor... mas o trabalho da doçaria de ovos a deixava tonta. Tachos, labaredas do inferno, gordura, o fumo que punha os olhos vermelhos a chorar.

E estranhava a ideia de botar açúcar em tudo. "Lambareiras, essas monjas, fidalgas, parece que desconhecem o sarrabulho, a linguiça, o toicinho de fumo. Ai, cá me benzo."

Trouxe de volta à terra um dos pés enquanto pensava no tio que a trouxera "pó'convento". Que ignorância "d'home"! Não sabia o tio das modas, imaginava ele que as monjas eram santas a rezar e fabricar doces e fazer caridades sem fim.

Será que o modo de dar nome aos doces não fora suficiente para alertar o tio, para atentar aos mistérios? Bolinhos-de-amor, orelhas-de-frade, beijos, lérias, velhotes, papos-de-anjo, barrigas-de-freira! Ah, deixa-me rir!

E a ela, pois, tocava-lhe avivar o lume, arear as panelas, arrancar-lhes do fundo a grossa calda de açúcar queimado. E mexer ovos, mexer ovos, antes que arrefecessem e se formassem grumos. E as monjas, cabelos empoados, debruçadas às janelas, a palrar com quem passava. E se entupiam de doces nos dias magros quando ela molhava o bolor das côdeas de pão no leite grosso e uns magros restos.

Começou a enxugar os pés na barra da saia de baetilha e a folgar os cordões das botinas para calçá-las.

"Macacos me trinquem, Senhor, se eu não faço mais virtudes, a me esfalfar, do que elas a darem de comer ao bispo. Minha cachimônia ferve, quase perco o sono. Sei que a Deus Nosso Senhor eu devo, mas que Ele não me faltará.

"E um dia vou fazer pó'Menino' uma sopa dourada que a vó Gertrudes me ensinou. E ele irá a ela como São Thiago ao moiros, vai lhe apetecer comê-la inteira, raspando o fundo da tigela... Uma sopinha de Jesus babar, achar de truz, d'arromba, regalar-se e com muita certeza me arranjar um sitiozinho aos céus."

Fazia-se tarde, levantou-se, tinha que abalar para a igreja. Refrescada, persignou-se e foi andando depressa em direção aos sinos que anunciavam o ano novo.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página