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Cotidiano

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Oscar Vilhena Vieira

Mal radical

Leis de autoanistia, quando produzidas no contexto do regime de arbítrio, servem para paralisar o direito

Caro Ministro José Carlos Dias, esta semana o Sr. confessou aos alunos da Direito GV que a questão da necessidade de revisão da Lei de Anistia vem lhe causando um profundo tormento. Como deixar impune um coronel do Exército Brasileiro que confessou à Comissão Nacional da Verdade ter participado de brutais sessões de tortura, assassinatos, desconfiguração de cadáveres e sua posterior ocultação? Como aceitar a anistia deste mesmo coronel que não se demonstrou minimamente arrependido ao afirmar que, se necessário, faria tudo novamente? Ao mesmo tempo, como superar o princípio da não retroatividade da lei penal ou ainda a prescrição?

Se ouso enfrentar publicamente suas demandas é por ter clareza que meus críticos contribuirão, em muito, para iluminar suas legítimas dúvidas.

O confronto com o "mal radical", no dizer de Kant, nos deixa perplexos e eventualmente paralisados. Leis de autoanistia, quando produzidas no contexto do regime de arbítrio, como ocorreu no Brasil, servem para paralisar o devido funcionamento do direito após a transição. Podemos juridicamente afastar este instrumento que nos paralisa?

Meu melhor argumento para favorecer a revisão da Lei de Anistia seria sustentar a sua invalidez, pelo menos no que se refere à desresponsabilização daqueles que cometeram crimes contra a humanidade.

Três são as razões para sustentar que nossa Lei de Anistia é inválida. A primeira delas se refere à ilegalidade da tortura e dos desaparecimentos forçados, bem como de barreiras para sua responsabilização, estabelecidas pelo direito internacional cogente, ao tempo da adoção da Lei de Anistia.

Em segundo lugar, por paradoxal que possa parecer, a Lei de Anistia é incompatível com a Carta de 1969, que assegurava a "inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade...". Logo não poderia ter servido de fundamento de validade para uma lei que desonerou de responsabilidade aqueles que afrontaram esses valores. Também não me parece aceitável que a Constituição de 1988 tenha recepcionado a Lei de Anistia, ao menos no que se refere à prática da tortura.

Nesse sentido, caso o Supremo Tribunal Federal viesse a declarar a inconstitucionalidade da Lei de Anistia, esta perderia seus efeitos desde a sua origem. Ou seja, ela seria anulada e não revogada, o que significaria que a questão da retroatividade não se colocaria. Resta, porém, a questão da prescrição. Para muitos, os crimes contra a humanidade são imprescritíveis e leis inválidas de autoanistia apenas suspendem os prazos prescricionais.

Tenho dúvidas de que esses argumentos, que em alguma medida foram agasalhados pelas cortes de muitos países, como Argentina, Chile, Uruguai, bem como pela Corte Americana de Direitos Humanos, sejam suficiente para afastar seu desconforto. Talvez a questão da punição daqueles que cometeram crimes contra a humanidade jamais alcance uma solução ótima.

Penso, no entanto, que os esforços realizados pela Comissão da Verdade têm contribuído de maneira fundamental para que a impunidade histórica e moral não se cristalizem. Reputo como da maior relevância o fato de que as Forças Armadas irão iniciar sindicâncias para averiguar a prática de crimes contra direitos humanos em suas dependências. O eventual reconhecimento e reprovação dessas práticas seria um primeiro ato de reconciliação de nossos militares com a democracia e seus valores. E isso não é trivial.


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