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Cotidiano

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Jairo Marques

Daqui da cozinha

Nem um tostão do prometido para investimento em acessibilidade como legado da Copa foi empregado até ontem

Semana que vem tem Copa, aêêê! Pode explodir foguete na Paulista, pode parar o trânsito, pode quebrar tudo, porque o país vai ficar vidrado nos dribles e nos gols paridos nos gramados e arenas novinhos espalhados de norte a sul desta terra em que se plantando talvez, caso não roubem as sementes, alguma coisa venha a nascer!

Mesmo sendo "na nossa casa", onde supostamente toda liberdade é possível, é da cozinha que eu e meia dúzia de pessoas com deficiência, que habitam esta nação e atrasam a passagem de quem está com pressa, vamos assistir aos jogos e comentar os penteados do Neymar. Não vai rolar chegarmos até a Copa.

Nem um tostão furado, é sério, nem um, do prometido para investimento em acessibilidade como legado do evento, foi empregado até ontem por administradores públicos. Que se cuide o senhorzinho espanhol cadeirante que irá desembarcar em Salvador para ver Xavi e Iniesta aprontarem no meio-campo.

Ir atrás do "Ilê" ao longo do Pelourinho ou fazer batuques no ar ao som da Timbalada que passa perto do Bonfim vai continuar sendo benefício dos ungidos com pernocas e "pasodobles" perfeitos.

De um bolo com R$ 185 milhões, recursos que ampliariam significativamente a dignidade dos "imperfeitos" que zanzam pelas capitais onde acontecerá o Mundial, não se gerou nem um glacê para adoçar a amargura da carência de sinalização tátil nas calçadas, o que facilitaria um bocadinho a labuta diária dos cegos.

Ao alemão meio capenga que virá a Pernambuco na expectativa de vibrar com o atentado Klose, sugiro pensar bem antes de se aventurar a sair do hotel, mesmo que seja para rezar a nossa senhora do gol de placa em alguma das históricas igrejas do Recife.

Aliás, sorte daqueles que conseguiram um quarto que comporte bem uma pessoa com mobilidade reduzida. Já testemunhei locais que, para entrar na suíte, era preciso vencer "alguns degraus, coisa pouca" e outros "totalmente acessíveis, só o banheiro que não"...

Na terra do frevo, não foi possível usar nenhuma lasquinha dos R$ 185 milhões para melhorar as rampas de Boa Viagem nem para equipar vans que levarão o turistão "mal-acabado" até o mercado de artesanato. Vai ter de andar no colinho.

Mas, imbuído do espírito esportivo para ser pentacampeão, o italiano usuário de muletas fechará os olhos para nossas desgraceiras urbanas e deitará o cabelo até seu lugar reservado na Arena Amazônia.

Da minha cozinha, vou torcer para que a raiva dele seja apenas levinha ao entender que ninguém sabe ao certo onde ficam os lugares reservados para o povo cambaleante no estádio e que o elevador quebrado será consertado em breve, na Copa de 2082.

Isso sem falar nos olhares ressabiados das pessoas que cochicham: "Que diabos esse ser vivente está fazendo aqui? É ruim para ele ficar no meio dessa multidão". Nem um centavo o Brasil conseguiu empregar, em quatro anos, para discutir o direito à inclusão em qualquer lugar e situação.

Oxalá o robô levando um paraplégico a tiracolo, que dará o pontapé inicial da competição, em São Paulo, chute também os móveis da sala e abra alas para que eu e milhares de outros possamos sair desta angustiante cozinha.


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